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Resolvemos
analisar a letra de todos os sambas-enredo cantados pelas escolas do grupo
especial no ...) Nosso objetivo agora era verificar o que havia mudado
e o que permanecia em mais de 20 anos de predomínio dos efeitos visuais.
Os temas seriam os mesmos? Outra visão do Brasil seria proposta? Os enredos
oníricos, geralmente interpretados como fuga quase necessária na fantasia
ao longo dos governos militares, teriam desaparecido coma liberação de
possíveis veios críticos? Ou o "efeito Joãosinho Trinta" se
teria ampliado, apesar dos percalços vividos nos últimos anos pelo carnavalesco?
Enfim, qual seria o discurso do samba-enredo nesse ano de 1997 ?
O que de início chama a atenção é o deslocamento das frequências mais
elevadas. Agora, a categoria mais destacada não mais diz respeito a glória,
mas sim a magia e encantos, juntamente com festas e carnavaL
Não que a primeira tenha desaparecido. Ainda retém uma frequência
notável, de 8,3%. Mesmo assim, estamos longe dos 13,35% da primeira amostra.
O mais interessante, porém, é que grande parte dos vocábulos incluídos
nessa categoria (a ponto de corresponder a 5,93% do total das 590 palavras
levantadas desta feita) diz respeito a esplendor: brilho, luz e fogo iluminam
e incendeiam os versos. Os vocábulos referentes a glória, epopéia ou valor
são claramente minoritários (1,53% do total geral). Tudo sugere que houve
um deslizamento, de temas ligados a valor, vitória, heróis, para o campo
do deslumbramento festivo.
Enquanto os sambas-enredo dos anos 1948-75 falavam de modo relativamente
discreto do próprio carnaval (7,30%), em 1997 a categoria festas e
carnaval tem sua presença mais que duplicada em termos de frequência.
São 16,44%, pouco menos que mistérios e encantos (16,78%).
... Nesse ponto, ao que parece, a influência dos carnavalescos tem certo
peso. Em primeiro lugar, ao desenvolverem e explicitarem o tema apresentado
pela sinopse, os carnavalescos parecem suprir os compositores com grande
carga de referências eruditas (ou pseudo-eruditas), que, por assim dizer,
evitam ao sambista a procura das antigas antologias. Não que isso facilite
a vida dos compositores, que, de qualquer maneira, estão frente a um repertório
de palavras, no mínimo, exóticas...
Mas o carnavalesco é ao mesmo tempo origem e fiscal do desenvolvimento
do samba-enredo. Na medida em que faz parte da comissão que seleciona
os sambas, ele vai acompanhando o modo pelo qual os compositores se utilizaram
de sua linguagem e, ainda que não exerça um controle repressor, é claro
que dispõe de vários trunfos para interferir na escolha dos sambas mais
fiéis à sinopse. No fim das contas, tudo deixa supor que esse processo
redunde numa formatação estilística mais próxima dos próprios padrões
do carnavalesco.
Em outros termos, o código predominante passa a ser o da classe média,
e as "palavras de purpurina" somente são conservadas se o nexo
coma temática do enredo for patente. Nesse aspecto, o discurso do samba-enredo
situa-se claramente como coadjuvante do próprio brilho do desfile. Não
há mais tensão entre a letra e as alegorias. Uma é o reforço da outra.
O acúmulo de palavras referentes a brilho e esplendor sublinha essa função.
Do mesmo modo, o enfoque contemporâneo do carnaval como sítio da loucura
e do desfile como encenação de um sonho parece expressar não mais a fuga
de uma realidade desagradável, mas sim o enquadramento, paradoxalmente
racionalista, que assume a dimensão da festa como algo totalmente desvinculado
de qualquer possível ligação com o mundo cotidiano.
... A análise do conteúdo dos sambas-enredo de 1997 sugere, além das diferenças,
uma grande continuidade entre os temas de outrora e os de hoje, como se
os sambas atuais retomassem, dentro do acervo de poesia lírica acumulado
desde anos 30, aquilo que melhor expressa a sensibilidade de hoje, que
esteve sempre presente ao longo dos anos, desde os em que, dizia Silas,
"a suntuosidade [nos] acenava". Em meio às transformações da
sociedade brasileira, a retórica do samba-enredo permanece..."
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