Lirismo

 

          Vou tentar trazer para o nosso debate as informações deste trecho do livro da Monique Augras:

          "O que de início chama a atenção é o deslocamento das frequências mais elevadas. Agora, a categoria mais destacada não mais diz respeito a glória, mas sim a magia e encantos, juntamente com festas e carnavaL Não que a primeira tenha desaparecido. Ainda retém uma freqüência notável, de 8,3%. Mesmo assim, estamos longe dos 13,35% da primeira amostra. O mais interessante, porém, é que grande parte dos vocábulos incluídos nessa categoria (a ponto de corresponder a 5,93% do total das 590 palavras levantadas desta feita) diz respeito a esplendor: brilho, luz e fogo iluminam e incendeiam os versos. Os vocábulos referentes a glória, epopéia ou valor são claramente minoritários (1,53% do total geral). Tudo sugere que houve um deslizamento, de temas ligados a valor, vitória, heróis, para o campo do deslumbramento festivo."

          Este trecho é importante, o centro da discussão - os temas dos sambas agora deixaram de ser grandes passagens históricas, com heróis e mártires. A festa, o carnaval, a fuga da realidade são os fundamentos do discurso do samba-enredo no final dos anos 90.

          "... Nesse ponto, ao que parece, a influência dos carnavalescos tem certo peso. Em primeiro lugar, ao desenvolverem e explicitarem o tema apresentado pela sinopse, os carnavalescos parecem suprir os compositores com grande carga de referências eruditas (ou pseudo-eruditas), que, por assim dizer, evitam ao sambista a procura das antigas antologias. Não que isso facilite a vida dos compositores, que, de qualquer maneira, estão frente a um repertório de palavras, no mínimo, exóticas..."

          O velho hábito de pesquisa em bibliotecas e livros didáticos, tão citado em entrevistas por antigos mestres, é freiado.

          "Em outros termos, o código predominante passa a ser o da classe média... Nesse aspecto, o discurso do samba-enredo situa-se claramente como coadjuvante do próprio brilho do desfile. Não há mais tensão entre a letra e as alegorias. Uma é o reforço da outra."

          E aqui está a chave da questão. O samba-enredo moderno é, cada vez mais, a trilha sonora do desfile. Deve estar inserido na proposta de carnaval da escola. Na proposta estética das alegorias, no horário do desfile, no número de componentes da escola,... A obra samba-enredo não tem mais personalidade própria. Nada se cria a partir dela (a não ser eventuais convenções da bateria), ela é criada para compor um cenário.
Tem que se encaixar no quadro.

          " ... A análise do conteúdo dos sambas-enredo de 1997 sugere, além das diferenças, uma grande continuidade entre os temas de outrora e os de hoje, como se os sambas atuais retomassem, dentro do acervo de poesia lírica acumulado desde anos 30, aquilo que melhor expressa a sensibilidade de hoje, que esteve sempre presente ao Iongo dos anos, desde os em que, dizia Silas, "a suntuosidade [nos] acenava". Em meio às transformações da sociedade brasileira, a retórica do samba-enredo permanece..."

          Essa opinião da autora do livro contrasta com as opiniões de alguns dos nossos colegas.
          Até que ponto a retórica do samba-enredo realmente permanece hoje em dia ?
          Eu acho que não, acho que ela mudou em consequência das mudanças nos desfiles.
          Se nós não gostamos dessa nova retórica, acho que devemos questionar a proposta de carnaval como um todo e não apenas os sambas e os compositores atuais.
          A questão passa, entre outras coisas, pelos temas e pela criatividade no desenvolvimento deles.
          Este é meu próximo assunto.

 

Eugênio Leal
(Eugênio é jornalista, ritimista e compositor)

 

Artigo-68
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