Samba: Origens, transformações e indústria cultural (1916 - 1940)

 

Capítulo III - O papel da indústria cultural

  3.1. O surgimento da indústria cultural no Brasil

          Indústria Cultural é um fenômeno que surgiu na Europa a partir da Revolução Industrial, no século XVIII. Seguindo a análise de Teixeira Coelho, Cristina Tramonte explicou que o termo apareceu e com ele se produziram dois processos básicos:

"A reificação [ou coisificação] e a alienação [a separação do individuo do fruto de seu trabalho, seja pela impossibilidade financeira de adquiri-lo, seja pela incompreensão da totalidade do processo de sua produção]. A cultura produzida em série passa a ser não um instrumento de crítica e conhecimento, mas um produto qualquer, trocável por dinheiro... feito para um público que não tem tempo de questionar o que consome, e perecível, que quase não tem valor de uso, mais simplesmente valor de troca" (Tramonte, 2001, p. 43).

          Desta forma, o século XIX na Europa foi marcado por diversas mudanças relacionadas com o mundo artístico e cultural. Com o surgimento da burguesia houve conseqüentemente o surgimento do chamado mercado de bens culturais, quando o próprio significado da palavra arte se modificou. Este foi então o primeiro fator, onde se percebeu o advento de um novo tipo de mercado. Anteriormente, a arte era relacionada com uma forma especial de qualificação, ligada principalmente à criatividade inata do ser humano.
          Com a nova ordem mundial, arte passa a ser relacionada com estética, ao mesmo tempo em que a palavra "cultura" passa a se restringir ao particular, ou seja, associada mais à maneira de se viver.
          A literatura, por exemplo, foi durante vários séculos ligada à religião e à função de atestar o poderio do monarca; com o advento da burguesia ela passou a desempenhar outro papel. Quando a literatura rompeu com a subserviência ideológica desempenhada até então, ela passou a se recusar a escrever para um público de massa, "a partir de um determinado momento a literatura, ao recusar o determinante político, se constitui como uma prática específica" (Ortiz, 2001, p. 20). A literatura passou a ser uma profissão com normas próprias, ocorreu o mesmo com outras áreas da produção artística.
          Adorno, em Dialética do Esclarecimento, valorizou, em um primeiro momento, este novo espaço aberto pela burguesia, onde a arte passou a se guiar pelas próprias regras, como uma maneira de romper com as formas ditadas pelas sociedades tradicionais. Posteriormente, a obra de Adorno e Horkheimer nos mostrou "como esta autonomia, que eles pensam como o espaço da liberdade, é pouco a pouco invadida pela racionalidade da sociedade industrial" (Ortiz, 2001, p. 22).

"O público não experiencia nada de novo verdadeiramente, mas apenas sua aparência; a mudança superficial de assuntos encobre um esqueleto fixo que não muda os modos de fruição cristalizados na mentalidade das massas" (Adorno, 1987, p.97).

          Também no século XIX houve o desenvolvimento de um tipo específico de produção voltado para um amplo mercado de consumo, cuja característica foi a "mercantilização da cultura" (Ortiz, 2001, p. 18). É neste momento que surgiram as primeiras críticas e análises sobre a cultura de massas, e o público encontrava-se dividido entre uma produção restrita voltada para os intelectuais e outra abrangente, com finalidade comercial.
A intenção deste mercado foi e continua sendo a de vender, para isso ele busca induzir as pessoas ao consumo sem se importar em provocar a crítica, utilizando-se sempre da mesma "fórmula" quantas vezes for necessário, contanto que continuasse a gerar lucros.

"A técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à reprodução em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social" (Adorno, 1987, p. 115).

          Aqui no Brasil, este processo ocorreu de forma diferente devido as nossas especificidades distantes das européias. Como já referimos, no Brasil o sistema capitalista se desenvolveu de forma retardada e insuficiente no inicio do século XX, incapaz de atingir todas as esferas sociais. Desta maneira o chamado "mercado de bens simbólicos" não conseguiu se expandir de forma eficiente, este seria então o principal motivo pelo qual se tornou tão difícil efetivar a problemática que Adorno e Horkheimer colocam acerca da indústria cultural.

"[...] a padronização promovida por e através dos produtos culturais só é possível porque repousa num conjunto de mudanças sociais que estendem as fronteiras da racionalidade capitalista para a sociedade como um todo[...] procura mostrar que na sociedade moderna os espaços individualizados são invadidos por esta racionalidade e integrados num mesmo sistema" (Ortiz, 2001, p. 46).

          O rádio só chegou ao Brasil por volta de 1922 e durante quase uma década ele não foi ligado a propagandas comercias porque se encontrava ainda em fase de experimento, ligado muito a mais ao sucesso individual de seus apresentadores do que aos grupos de empresas sedentas por divulgação de seus produtos. A própria técnica do marketing tão comum nos nossos dias, ainda estava distante de chegar aos meios de comunicação, "[...] mesmo em sua fase "amadorística", o rádio já permitia o lançamento de algumas músicas e de alguns músicos no cenário carioca" (Fenerick, 2002, p.171).
          Nos anos 30 começou a haver mudanças significativas. Uma legislação favoreceu a publicidade no rádio fixando, em 1932, uma taxa de 10% de publicidade no total da programação diária. Este processo de modificação na legislação se deu de certa forma, como um desdobramento da chegada do rádio a válvula. Isto possibilitou a ampliação da difusão para ouvintes que antes estavam incapacitados de sintonizar os programas. Devido ao alto custo, estes programas encontravam-se restritos às cidades em que eram de fato produzidos. O dinheiro que os programas de rádio arrecadou com as publicidades foi o que possibilitou manter a programação no ar.

"Vivia-se por assim dizer um período intermediário entre o amadorismo total e o profissionalismo, pois o tempo destinado à publicidade dava-se de modo 'separado' do programa que estava sendo apresentado" (Fenerick, 2002, p. 172).

          No mesmo ano surgiu na rádio Philips um programa comandado por um pernambucano que se chamava Ademar Casé. Seu programa era constituído de duas partes, uma com música popular e a segunda com música erudita. A Rádio informa a Casé do sucesso da primeira parte do programa, reservado para a música popular, e é quando ele resolve mudar a estratégia do programa, retirando a parte erudita. Embora não pareça ter gostado muito de dedicar quatro horas do programa só à música popular, Casé admitiu ter a necessidade de audiência e acabou concordando. O Programa Casé acabou influenciando os outros programas brasileiros e trouxe a atenção de patrocinadores que queriam maior número de músicos contratados.
          O aumento significativo de propagandas, ou seja, os investimentos publicitários exigiam das rádios cada vez mais um aspecto profissional e a rádio, por sua vez, exigia dos músicos, sambistas em geral, atitudes mais profissionais também, como o respeito aos horários e aos compromissos agendados. Isso, claro, proporcionou boas histórias de problemas que aconteciam entre sambistas boêmios e rádio.
          É durante a década de 30 que irá se firmar a prática do "contrato de trabalho" para os músicos. Isto se devia ao fato das rádios contratarem de forma permanente seus músicos, o que trouxe para eles ter seu trabalho legalizado. Os músicos recebiam normalmente por apresentação ou por programa feito. A competição entre as rádios aumentava de acordo com o sucesso do cantor. Com o tempo esses artistas se tornavam consagrados e eram contratados como grandes estrelas, por trazerem audiência e conseqüentemente mais investidores, como é o caso de Carmem Miranda.
          Na década de 40 e 50 o rádio encontrou seu momento de esplendor. Surgiram vários tipos de programas, como programas de auditório e radionovelas. Da mesma forma, o cinema se transformou nestas décadas em um bem de consumo devido principalmente ao sucesso dos filmes norte-americanos, que até então esteve voltado para seu próprio mercado interno não se interessando muito pelo mercado externo, fato que muda após uma crise de público nas salas de cinemas dos EUA. Tanto o cinema quanto o rádio, e outras esferas artísticas nacionais, começaram a esbarrar em um grave problema em suas tentativas de atingir um maior número de público: o subdesenvolvimento do país. Não é que a expansão na divulgação não crescesse a cada ano; o problema é que a porcentagem de crescimento era muito inferior e distante da porcentagem total da população. Ou seja, grande parte da população estava excluída deste novo sucesso do momento: o rádio.
          Este baixo acesso da população aos novos meios de comunicação se deveu a diversos problemas, tanto aos baixos salários, que impossibilitavam a compra de um aparelho, quanto pela própria formação da sociedade brasileira.
          Neste período era muito forte ainda, mesmo após a Revolução de 30, a presença das oligarquias. O Estado ainda não havia conseguido, embora muito quisesse, efetuar uma integração cultural, muito menos aquela necessária para caracterizar uma "sociedade de massas". Para seu projeto de organização política e cultural, Ortiz explica que o Estado contava com intelectuais que trabalhavam para legitimar e difundir sua ideologia:

"A radiodifusão é pensada em termos estratégicos, e para se garantir a finalidade 'educadora' do veículo ele deve ser coordenado e disciplinado pelo poder central. Porém, se é verdade que o discurso estadonovista afirma que é 'prejudicial a radiodifusão livre' ele não deixa de contemplar o pólo oposto ao considerar que 'é cedo para radiodifusão exclusivamente oficial'. Esta contradição que pode ser apreendida a nível discursivo revela um hiato entre a intenção política do Estado e a realidade social" (Ortiz, 2001, p. 53).

          É por isso que, quando o Estado modificou a legislação permitindo a publicidade em programas de rádio a 10% da programação total (em 1952 a 20%), ele encontrou a solução perfeita para este dilema.
          Nos anos 40 e até mesmo os anos 50, não se pode dizer que havia no Brasil uma sociedade de consumo porque era o momento que esta sociedade começou a ganhar forma. Durante a década de 60 houve um desenvolvimento considerável deste mercado de bens culturais, claro que isso não significou um desenvolvimento contínuo e padronizado entre todas as esferas deste mercado. A indústria do disco, por exemplo, somente se estruturou nos anos 70. O fato do mercado de bens simbólicos estar em constante desenvolvimento deveu-se, principalmente, às diversas transformações em que a sociedade brasileira passava, de consolidação do processo de "capitalismo tardio" iniciado nas primeiras décadas do século XX.
          O disco no Brasil surgiu, em 1902, com o tcheco Frederico Figner que desembarcou no Brasil no ano de 1891, fazendo grande sucesso por onde passava com seu fonógrafo reproduzindo sons feitos na cera. Quando se tornou popular, Figner logo tratou de contratar alguns artistas mais conhecidos na noite boêmia carioca para gravá-los. Com o lançamento do gramofone em 1904, o tcheco adquiriu o direito da Odeon de fabricá-los no Brasil, conseguindo vender até o ano de 1911 mais de 800 mil discos, graças ao surgimento da Sociedade Phonográfica Brasileira que ajudou na vendagem junto às classes mais populares. Surgiram também revistas especializadas em música que visavam explicar o processo de gravação e conselhos para se gravar bons discos.
          É quando o samba entra naquele processo de modificação estrutural a que já nos referimos. Antes os sambas tinham como característica o estilo partido-alto, ou seja, feito na base do improviso. Com as gravações, eles passam a ter uma segunda parte fixa, e com a divulgação deles assim, cada vez mais o samba foi aderindo a esta forma.
          Quando, no ano de 1926, chega ao mercado brasileiro a novidade da vitrola, a Odeon européia decidiu rescindir o contrato com Figner e abriu sua filial no Brasil para fazer frente a gravadoras como a Columbia, que já se encontravam no país.

"O mercado de discos brasileiros, no final da década de 20, também estava em ritmo de revolução, com o advento da gravação elétrica e a instalação de várias gravadoras no país. Até 1928 existia apenas uma gravadora lançando discos no Brasil, a Casa Edison, de propriedade da empresa Odeon. Nesse ano são inauguradas a Parlophon, também da Odeon, sede Rio de Janeiro e todas precisando de novos músicos para completar seus casts" (Vianna, 2002, p. 110).

          A melhoria das gravações possibilitou o surgimento de novos cantores e músicos. Tanto sambistas negros oriundos da Cidade Nova, como sambistas oriundos da classe média, como Carmem Miranda foram os principais artistas que se profissionalizaram e atuaram nestes novos meios que surgiam. Por isso, com o sucesso destes cantores e compositores, todos ligados ao samba, o interesse da indústria cultural se voltou para o "morro":

"Havia um enorme estoque de 'matéria prima' e foi para cima que as atenções da indústria do samba se voltaram. Muitos cantores famosos da época tiveram que subir o morro para conseguir alguns de seus grandes sucessos" (Fenerick, 2002, p. 165).

          O que leva a crer que samba começava a dar então alguns lucros para aqueles que o interpretavam, por isso é que teremos no final da década de 20 e durante a década de 30 um aumento significativo de jovens de classe média adentrando no universo do samba, Carmem Miranda é um bom exemplo disto. Nota-se que ainda os sambistas do morro não tinham uma boa idéia do que se tratava, e não entendiam porque alguns sambistas vendiam seus sambas.
A respeito da indústria fonográfica, importante para a análise do samba, ela só teve seus primeiros dados oficiais a partir de 1965 sendo que, desde 1911, os discos eram comercializados no país ainda que com uma baixa porcentagem de vendas. Com o avanço da tecnologia para as gravações e o fato desta tecnologia ter sido popularizada, a partir dos anos 40, houve o surgimento de algumas gravadoras independentes. Mas isto ainda era muito insignificante, tanto que o Brasil tinha um mercado 40 vezes menor que o dos EUA nos anos 60. Os números, por exemplo, indicavam que na década de 70 somente 60% da população tinha algum tipo de eletrodoméstico.
          Um fato importante da história do surgimento das gravações em disco esteve no fato de que tais gravações como foi dito, eram feitas pelo contrato de músicos populares da noite carioca. Entre esses, estavam Anacleto de Medeiros, Cadete e Baiano, todos ligados de alguma forma com o "samba", ou aquilo que viríamos a chamar de samba. O que quer dizer que, mesmo de forma muito inconsciente, estes músicos estavam contribuindo para o "estabelecimento da música popular" (Caldeira, 2004, p. 70).
          A partir deste processo histórico, percebemos que além do cantor e do público ouvinte temos também que considerar o papel desempenhado pelos compositores. Estes, ao falarmos de samba, são em sua grande maioria negros e por isso "teria de individualizar-se, abrir mão de seus fundamentos coletivistas (ou comunalistas), para poder ser captado como força de trabalho musical" (Sodré, 1998, p. 39). Já no inicio da década de 20 os meios de comunicação de massa começavam a se estabelecer no Brasil e isto acelerava o processo de individualização das pessoas, ainda mais dos sambistas que estavam ligados a estes meios de comunicação de massa para desenvolverem sua arte. Então, ganhar dinheiro com a música não era lá uma novidade porque desde a segunda metade do século XIX percebemos o comércio de partituras e exemplo maior disto é Chiquinha Gonzaga.
          No inicio do século XX então, os músicos procuravam a profissionalização, porque o próprio "mercado de trabalho" acabava exigindo, e isso foi feito por sambistas como Sinhô. Em busca de profissionalização, vários deles tocavam de graça em bailes e festas da cidade. A grande maioria destes músicos era chamada de "músicos populares", justamente devido ao fato de não saberem ler partituras. Claro que esta condição não é generalizada: Pixinguinha, por exemplo, negro e músico, sabia ler partitura. Fenerick cita em sua tese uma importante passagem, com Sinhô, sobre esta questão:

"Sinhô, por seu turno, mesmo quando não tinha grande confiança no seu solfejo, não se abalava nem um pouco com essas exigências. Diz o seu biógrafo, Edigar de Alencar, em um sarau onde ele tocava, 'muitos o chamavam de maestro. E ele nesse tempo ainda não conhecia bem as notas, embora já fosse um bamba do teclado. No decorrer do sarau, espevitada mocinha, vendo-o executar com desembaraço e personalidade várias composições populares, dele se aproximou com uma parte musical nas mãos e pediu-lhe que a executasse, a fim de que ela cantasse[...] Sinhô empalideceu, mas não se deu por achado. Viu o titulo da música: 'Elegie', de Massenet. Pôs a parte na estante, fez menção de que ia executá-la, mas antes de ferir o teclado, olhou para a mocinha e lhe disse:
- Sinto muito, senhorita, mas não posso executar essa música. Não me dou bem com esse autor..."" (in Fenerick, 2002, p. 145).

          O episódio com Donga, onde uma música composta de forma coletiva era registrada por um único compositor tendo-a como sua, foi de certa forma comum. Isto acontecia porque nos primórdios do trabalho de compositor, estes normalmente adquiriam músicas feitas por um grupo e criavam em cima delas algo de diferente, de novo, e assim chamavam de suas.

"O tempo de reinado de Sinhô marca o inicio da substituição, ainda que nunca integral, da produção artesanal do samba, feito aos poucos e com um indeterminado tempo de maturação nas rodas de samba dos pagodes cariocas, pela produção industrial, com seu ritmo de produção em série que, de certo modo, obrigava os compositores a utilização de temas musicais oriundos dos mais diversos meios socioculturais, para suprir as necessidades cada vez maiores da recente industria de diversão que se instalava no Rio de Janeiro deste período" (Fenerick, 2002, p. 148).

          O teatro de revista lançava, já nos anos 20, muitas músicas de compositores como Sinhô, Pixinguinha, Ary Barroso, etc, através da voz de mulheres como a conhecida Araci Cortes. Araci Cortes levou muitos sambistas ao sucesso como compositores, pois cantava uma variedade de músicas dependem muito do que estavam representando e encenando no palco. É com o teatro de revista que irá se confirmar a tendência da compra de sambas, tanto melodia quanto de letras. Eram músicas feitas sob "encomendas" e que depois, ao serem gravadas em disco, mantinham seu formato do palco.
          Isto fez com que aumentasse o mercado da música popular brasileira, mesmo que estas músicas estivessem cobertas por certas exigências que o próprio mercado musical passou a fazer. É neste momento, com os compositores chegando ao sucesso e reconhecimento, que surgiram as organizações que lutavam por seus direitos, como a SBAT, já citada, e que teve em Ary Barroso um defensor ferrenho.

"A arrecadação de direitos autorais estabelecida pela SBAT - dividida entre o pequeno direito e o grande direito (entendido como direito autoral teatral) - , no entanto, apenas protegia os compositores revisteiros. Os músicos e compositores não ligados ao teatro não recebiam, ou muito pouco recebiam, os direitos autorais arrecadados pela SBAT. A SBAT configurou-se como uma entidade de e para 'intelectuais', uma vez que era constituída em sua maioria por teatrólogos" (Fenerick, 2002, p. 156).

          Claro que outras entidades também apareceram nesta mesma época, com o crescimento da indústria cultural no Brasil. Foi quando surgiu o Centro Musical Carioca, que em sua fundação, em 1907, tinha caráter mais civil e menos de sindicato como passou a ter mais tarde, que cuidava de regulamentar o trabalho do músico como garantir um mínimo de salário e marcar concertos e espetáculos a fim de colocar seus músicos para trabalhar. Neste tempo o músico que fizesse parte destes centros musicas, que mais tarde chegaram a muitas cidades como Porto Alegre por exemplo, tinham vantagens para arranjar mais trabalhos. Este Centro Musical entrou em boas brigas para melhorar a vida dos músicos, como estipular carga horária e estabelecer cachês e lutar contra a entrada de músicos estrangeiros. O Centro Musical recebia muitas críticas por seu caráter rígido e elitista, já que era formado basicamente por professores de música. Estas críticas ao Centro de Música se davam principalmente pela posição contrária do Centro à questão do surgimento das jazz-bands, que para eles faziam uma concorrência desleal e sem níveis técnicos necessários.
          Nos anos 20 estas jazz-bands davam muitas chances de empregos para músicos populares. Ao mesmo tempo em que empregavam, as jazz-bands também desempregavam aqueles músicos que não se adequassem às novas exigências do mercado de trabalho, porque este estilo de música exigia dos músicos a utilização de instrumentos com os quais nem todos estavam acostumados. "A concorrência no mercado de trabalho, no entanto, e em pouco tempo, somada com outros fatores, transformar-se-ia na ideologia da 'invasão estrangeira', especialmente a norte-americana" (Fenerick, 2002, p. 161).
          Junto a isso tinha a inserção do disco, com uma produção musical crescendo não só em relação à qualidade artística como também em melhoria no processo de industrialização. Primeiro, tivemos a profissionalização dos músicos, depois estes músicos passaram a participar mais de todas as esferas da vida artística nacional da época fazendo surgir novas profissões relacionadas ao meio musical e artístico, como o diretor artístico, por exemplo, além do aparecimento de novidades tecnológicas.

3.2. Carnaval: a institucionalização do samba

          Quando o século XX começou, a música popular no Brasil tinha uma grande variedade de estilos e o carnaval não era ainda definido nos moldes que conhecemos nos dias atuais. O carnaval era regado a muita música, mas que nem sempre se tratavam de músicas brasileiras. Mesmo após a organização do carnaval em bailes a festa continuava a ser movida por valsas, tangos, polcas e também outros tantos ritmos brasileiros. "Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade. Os outros ritmos no Brasil passaram a ser considerados regionais" (Vianna, 2002, p. 11).
          No fim dos anos 20, até por volta de fins da década de 40, tanto o samba quanto o carnaval tiveram muitas modificações, devido a uma série de fatores mas, principalmente, aqueles ligados às mudanças urbanísticas na cidade do Rio de Janeiro que visaram a uma maior modernização da cidade e, posteriormente, com as mudanças promovidas na sociedade, desencadeadas a partir da Revolução de 30.

"A expulsão de populares do centro da cidade, a favelização dos morros e a criação das escolas de samba, o crescimento populacional da cidade, juntamente com futura institucionalização do carnaval pela prefeitura, o processo deprofissionalização do artista popular e a visualização da possibilidade de sua realização artística nos diversos campos e novos meios de difusão são fenômenos correlatos" (Fenerick, 2002, p.89).

          O primeiro grupo de sambistas a imitar ranchos carnavalescos, denominação usada por eles em seu primeiro desfile, era composto por alguns negros desempregados.
          Mais tarde passando a se chamar escola, a "Deixa Falar" fundada em 1927 no Estácio, era uma mistura daquilo que estava sendo feito na Cidade Nova com um tipo especifico de criação musical deles mesmo, feito desde o inicio do século XX, ao estilo dos sambas feitos nas festas da casa das "Tias".
          Estas festas das "Tias", por não terem uma data especifica ou algo a se comemorar, eram realizadas em qualquer época do ano e hora do dia e por isso levaram o nome de "pagode". Mas além disto a comunidade também se organizava para outras festas, estas com datas pré-estabelecidas, como é o caso do carnaval. Os ranchos, entre as décadas de 10 e 20 do século passado, eram a forma que eles encontravam de brincar o carnaval sem ter que se preocupar com os parâmetros culturais vigentes.
          Quando estes ranchos passaram a ser chamados de "escolas" é um ponto divergente. São inúmeras as explicações para a mudança de nome, Ismael Silva se intitulou ser o primeiro criador de uma escola de samba, no bairro do Estácio de Sá. Vamos nos apegar a duas explicações mais usadas. A primeira faz referência a Ismael Silva, que diz ter dado este nome devido a proximidade dos ensaios com a Escola Normal; a outra, mais aceita, faz referência a descendência do primeiro rancho, Ameno Resedá, que desde a época já se intitulava rancho-escola. Como coloca Nei Lopes, reproduzindo a fala de Jota Efegê:

"Escola, pelo que ensinava, pelo que transmitia aos co-irmãos como lição. Escola pela jactância de constituir um conjunto de professores que trazia para o carnaval carioca idéias audaciosas de trabalhos plásticos, de vestiaria, onde o fausto, mesclando-se à profusão de cores e luz, fazia a força artística" (Lopes, 2003, p. 59).

          A partir daí, estaria então explicado o surgimento do termo escolas de samba, já que boa parte dos novos ranchos sofreram influências do rancho-escola Ameno Resedá. Como "escolas" eles buscavam a aceitação das camadas mais ricas da sociedade e conseqüentemente buscavam terminar com a perseguição e a repressão que sofriam.

"A origem das escolas de samba no Brasil já foi objeto de muitos estudos. Há unanimidades e divergências e isso se explica pelo fato de que é muito recente o registro sistematizado desses fatos: eles fazem parte de uma trajetória dos marginalizados, que não detêm o poder sobre os rumos da história oficial publicada ou sobre a visão que os meios de comunicação transmitem. Alguns trabalhos tiveram de ser organizados principalmente a partir de dados recolhidos da memória oral e, por isso, é compreensível que exista algumas divergências quanto a nomes, datas etc. Entretanto, todos os autores são unânimes em afirmar que quem dará inicio às escolas de samba será a população muito pobre que habita os morros em torno dos bairros ricos ou os mangues do fundo da baía da Guanabara" (Tramonte, 2001, p. 35).

          As escolas de samba herdaram muitos elementos dos ranchos, na sua estrutura, como o abre-alas, a porta estandarte, o mestre-sala, o enredo etc. Contudo, a principal mudança está justamente no samba, tanto no aspecto rítmico quanto na ginga e número de participantes, mas, principalmente na bateria. A pequena orquestra que costumava figurar nos primeiros tempos de rancho-escola deu lugar a uma poderosa bateria A mudança é bastante rápida, coisa de década, tanto que nos anos 40 não mais existiam os ranchos-escola.

"Saindo, então, à rua, organizado em escola, em busca de aceitação social, o samba veio incorporar e reelaborar as manifestações carnavalescas então existentes: a formação instrumental, primeiro a base de cavaquinhos e violões, tinha também elementos de percussão dos cordões e dos Zé-pereiras[...]" (Lopes, 2003, p.60).

          Voltando à década de 20, Nei Lopes também coloca que as fantasias femininas eram muito próximas do que as baianas vestiam em seu cotidiano e que mais tarde as alegorias seriam a tentativa que o pessoal das escolas encontrava para se parecer com a alta sociedade. O mesmo diz Cristina Tramonte: "Estes fatos contribuem para explicar muitas das características das escolas de samba: luxo, organização, preocupação com os trajes e com a presença social" (Tramonte, 2001, p. 38). Neste período inicial das escolas de samba a característica ainda era do improviso do desfile.
          Hermano Vianna explica que as escolas de samba também contribuem para a integração cultural entre camadas sociais tão diferentes, quando exemplifica:

"Em seu estudo sobre o desfile de escolas de samba no Rio de Janeiro, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti mostra como o carnavalesco atua como mediador cultural entre os vários grupos sociais da cidade e as várias definições de arte e brasilidade que esses grupos advogam" (Vianna, 2002, p. 118).

          A música característica desses desfiles de carnaval era o samba de partido-alto. Por volta de 1928, um morador do Engenho de Dentro chamado José Espinguela fazia diversas festas muito conhecidas e freqüentadas em sua casa por sambistas da região, cuja característica estava nas brincadeiras promovidas durante as intermináveis noitadas. Em uma destas brincadeiras Espinguela decidiu armar um concurso, em 1929, para ver quem melhor fazia um samba, convidando o pessoal da Portela (que ainda se chamava Conjunto Osvaldo Cruz), Mangueira e Estácio. O vencedor foi Heitor dos Prazeres, que fazia parte do pessoal da Portela, que receberia o troféu no domingo de carnaval daquele ano (Lopes, 2003, p. 62).
          Nos anos 30, especialmente em 1931, um jornal de esportes recém fundado, Mundo Esportivo, sem ter muito que falar de futebol após o término do campeonato, decidiu escrever sobre as escolas de samba mandando seu pessoal cobrir o evento de carnaval. A reportagem sobre o concurso das escolas fez com que no ano seguinte a prefeitura do Rio de Janeiro entrasse com uma pequena ajuda financeira. Em 1933 o jornal O Globo resolveu patrocinar os desfiles com alguns requisitos e uma banca julgadora formada praticamente por intelectuais e jornalistas que se interessavam por samba. Eles avaliavam poesia, enredo, originalidade e conjunto.
          Em 1935 ocorreu o carnaval oficial que contava com ajuda da prefeitura, e as regras do regulamento foram decididas pela prefeitura e a UES (União das Escolas de Samba, que há um ano já estava organizada como uma entidade). A partir de então teve dia e local certo. Entre as definições estava a regulamentação do samba-enredo, que devia ser apresentado antes para a comissão julgadora. Também ficou determinado que a bateria deveria ser formada exclusivamente por instrumentos de percussão, que melhor nos mostra a diferença entre o "samba do morro" e o "samba urbano", tão tocado em rádio.
          É quando o carnaval começou a despertar o interesse do público e até mesmo dos políticos. "Esse fascínio era confundido com um interesse pelo popular que cada vez mais competia com os interesses eruditos dos salões e da elite brasileira" (Vianna, 2002, p. 118). Enquanto que, por parte dos participantes, o carnaval, passou a representar, a partir daí, um meio de ascensão no mercado de trabalho voltado para a indústria do entretenimento.
          Antes mesmo de o carnaval ser institucionalizado, o bairro do Estácio já fazia um som diferente daquele praticado na Cidade Nova, como já foi referido, por isso dizem que o samba só se estabelece enquanto gênero musical a partir do morro. Isso ocorreu devido ao fato de que o morro e sua rica produção musical chamaram a atenção dos sambistas de toda a cidade do Rio de Janeiro. Os sambistas "da cidade" vão ao morro buscar "a matéria-prima para ser incrementada, para adquirir valor (para usar essa expressão de economia), na indústria do disco e/ ou do rádio" (Fenerick, 2002, p. 111). É neste momento que vários compositores do "morro", como o pessoal do Estácio, começaram a ter maiores contatos com sambistas de classe média. Um bom exemplo, sempre bastante usado, está na parceria entre Ismael Silva e Noel Rosa, considerado um dos primeiros a "subir o morro". No caso, Ismael teria dado a primeira parte do samba a Noel Rosa e este por sua vez, terminaria o samba. Muito comum era na verdade, o inverso. O sambista do morro normalmente vendia seus sambas e seu direito sobre a autoria, na cidade, onde o comprador desfrutava do sucesso. Fenerick completa muito bem a questão "morro" e "cidade" dizendo:

"O samba de morro ou o samba praticado nas (e pelas) escolas de samba será aquele que utilizará exclusivamente (ou obrigatoriamente) instrumentos de percussão, muitas vezes denominado de batucada. Uma roupagem muito diferente da maioria dos sambas das rádios e dos discos [...], deste modo, na década de 1930, o samba de morro presenciaria um duplo processo de valorização social - juntamente com a explosão comercial por meio dos cantores de rádio e do disco - e de controle social" (Fenerick, 2002, p. 112)

"A geração de sambistas que começou a fazer sambas no estilo do Estácio, é uma geração nascida entre 1900 e 1910, muito mais nova que a geração dos músicos da Cidade Nova, invariavelmente nascida nos últimos anos do século XIX. Além disso, essa nova geração de sambistas não havia experimentado o início, (ou dado os primeiros passos na direção), daquilo que chamamos de profissionalização do músico na nascente indústria cultural das primeiras décadas do século XX. Isto é, os novos sambistas nunca trabalharam nos locais onde a geração de Sinhô e Pixinguinha trabalhou. Esses novos sambistas negros e/ou pobres nunca trabalharam nas salas de espera ou palcos dos cinemas mudos, nos cabarés da Lapa, no teatro de revistas, assim como nunca fizeram excursões para Buenos Aires, para Paris, etc. Eles se formaram, como muitos músicos e sambistas, apartados deste universo do show business dos anos de 1910 e 1920. A geração de Ismael Silva, Bide e Marçal era uma geração que cultuava o samba (possivelmente tanto quanto a anterior), entretanto, o queriam preferencialmente para as grandes festas populares (como o carnaval), uma vez que o show business nascente em finais da década de 1920, inicio da de 1930, lhes fechavam as portas (mas não para as músicas). Assim a geração do Estácio organizou o samba em torno das nascentes escolas de samba" (Fenerick, 2002 p. 113).

          O que se tem então é o samba, enquanto estilo musical, sendo institucionalizado a partir da organização das escolas de samba. Por isso a relevância de se questionar: institucionalização ou dependência? Fica claro que a institucionalização do carnaval trouxe consigo o reconhecimento da sociedade brasileira sobre a inserção da cultura negra no país. Talvez por isso, o carnaval tem sido tema de debate durante muitos anos.
          Por outro lado há os aspectos negativos de que, com a institucionalização do carnaval, o próprio acabou sendo debilitado. É que o Estado passou a controlar a organização dos blocos e a determinar uma série de coisas como: fim dos instrumentos de sopro, obrigatoriedade de temas relacionados com o nacional bem como a proibição da crítica à política e ao sistema, entre tantos outros já citados. Ou seja, ficava mais fácil fiscalizar. Isso ocasionou o fim da diversidade rítmica de cada escola de samba, "reconhecível de longe pela percussão da bateria" (Tramonte, 2001, p. 54), bem como o aparecimento, na década de 40, da preocupação excessiva com a estética, que é uma conseqüência direta da preocupação estrutural e organizacional que penetrava nas escolas de samba.
          Sabemos que a música era um dos pouquíssimos caminhos que os sambistas tinham para chegar a uma melhoria econômica. Mesmo que, desde a década de 20, alguns compositores das escolas de samba conseguissem chegar ao rádio, isso se dava sob forma de parcerias com pessoas já consagradas. Em 1946 houve a primeira gravação de um samba-enredo, feita pela Odeon. O samba se chamava: "Natureza Bela do meu Brasil" e foi tema da Escola de Samba Unidos da Tijuca. A partir daí houve gravações sucessivas de sambas enredo, já que estes sambas começavam a fazer um grande sucesso junto ao público. Com os desfiles das escolas sendo institucionalizados, o público que assistia passou a querer aprender os sambas para poder cantar enquanto sua escola de simpatia passasse.
          Um dos principais problemas para muitos estudiosos deste assunto, como Nei Lopes, está na mudança dos sambas-enredo. Uma vez institucionalizado, a obrigatoriedade de temas limita o talento e a criatividade dos sambistas, que até então, estavam acostumados aos improvisos e à espontaneidade.

"O controle das instituições carnavalescas fazia parte de uma estratégia geral de ingerência sobre as manifestações culturais do país: o rádio vai ser um destes instrumentos de controle e censura, por um lado, e de expressão do samba, por outro lado" (Tramonte, 2001 p. 56).

          Desta forma, conclui-se que a institucionalização do carnaval apresentou uma dialética. De um lado tivemos a privação criativa e representativa das Escolas de Samba, que passaram para a tutela do Estado, que vigia e analisa todas suas atividades; contraditoriamente esta oficialização impulsiona a força social da comunidade, ou seja, uma vez institucionalizadas as escolas se tornam entidades com força e representatividade perante o Estado.

3.3. Carmem Miranda: "Disseram que eu voltei americanizada".

          Durante a Segunda Guerra Mundial o samba estava presente no ambiente musical carioca, seja nas salas de cinema, seja nos teatros, no rádio e até mesmo nas Escolas de Samba. Até o cinema contava em seus musicais com artistas de sucesso do rádio.
          Enquanto isso, chegavam ao Brasil as primeiras imagens de Carmem Miranda (1909-1955) nos Estados Unidos. Mais tarde ela se tornaria um ícone da música brasileira lá fora.
          Ela foi para os Estados Unidos para uma temporada de teatro e despertou o interesse da imprensa americana com o sucesso de seu musical Streets of Paris (Ruas de Paris) e isto abriu para ela várias portas do mundo glamuroso de espetáculos norte-americanos.
          Tudo isso começou ainda aqui no Brasil, quando dois astros de Hollywood, Tyrone Power e Sonia Henje conheceram Carmem em uma de suas apresentações no Cassino da Urca. Os dois ficaram muito encantados com ela e assim surgiu o convite para a participação no espetáculo da Broadway, em Nova Iorque.
          O convite foi aceito e ela recebeu ajuda do Ministro das Relações Exteriores da época, Oswaldo Aranha, que mandou Carmem e o seu grupo Bando da Lua para os Estados Unidos. Com isso Carmem e seu grupo se apresentaram na Feira de Nova Iorque, no pavilhão brasileiro, onde ficavam expostos o café e as frutas tropicais.

"No jogo da aproximação entre Brasil e Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, entraram em cena importantes elementos simbólicos para a construção de uma geografia cultural que enfatizasse o poder norte-americano abaixo do Equador. O caminho entre as Américas deveria ser uma avenida de mão dupla: os brasileiros tinham de ser convencidos de que o american way of life (jeito americano de viver) era o ideal da democracia, e os americanos acreditariam nos brasileiros como inofensivos amantes do samba e das mulatas" (Mauad, 2004, p.56).

          Por isso, ela se tornou a Embaixatriz da Política da Boa Vizinhança, e também recebeu a incumbência de fazer a imagem do país lá fora. Esta política consistia em apertar os laços entre os países da América, sob os interesses norte-americanos, que em terras brasileiras contavam com ajuda da embaixada norte-americana e das maiores firmas daquele país, como a General Motors, por exemplo, que representavam símbolos desta cultura que se expandia.
          Quando estava nos Estados Unidos Carmem Miranda se apresentou também em acontecimentos oficiais da Casa Branca como a festa de aniversário do próprio presidente Roosevelt. Haroldo Costa coloca:

"[...] é evidente que sem o talento daqueles artistas nada aconteceria. Não houve benevolência por parte do público e da imprensa americanos em prestigiá-los. Prova disto é que até hoje Carmem Miranda é uma referência obrigatória e uma relação direta que os americanos - e não só eles - fazem com o Brasil" (Costa, 2000, p. 100).

          Logo, Carmem Miranda virou referência para as mulheres americanas, que lotavam as lojas famosas de Nova Iorque atrás de seus colares e pulseiras. Assim, com seu "estouro", ela passou a ser convidada a fazer cinema, contratada pela 20th Century Fox no ano de 1940, onde fez seu primeiro filme chamado: Serenata Tropical. Outros filmes vieram depois, por volta de 10, entre os anos de 1940 a 1947. E aí começaram alguns problemas.
          Quando Carmem fez seu primeiro filme, a Fox resolve lançá-lo em toda América Latina, mas com isso obteve uma reação contrária de alguns países, como é o caso da Argentina:

"Essa fita, exibida em todo circuito latino-americano, desagradou tanto a audiência de Buenos Aires que as poltronas de cinemas foram destruídas [...] tudo por falta de sensibilidade hollywoodiana que ignorava tanto a diversidade latino-americana como as diferenças que estavam por trás de rivalidades culturais. Confundir tango com rumba ou conga era no mínimo deselegante" (Mauad, 2004, p. 58).

          Da mesma forma, aqui no Brasil, a imagem de Carmem Miranda não estava sendo vista com bons olhos, já que ela passou a representar para muitos a imagem da americanização pelo qual passavam o país e o mundo.
          Mas para entender melhor este aspecto da recriminação que Carmem Miranda passou, é necessário voltar o tempo um pouco. Ela começou a fazer sucesso no Brasil a partir da gravação de "Pra você gostar de mim" (mais conhecida como "Taí")(Joubert de Carvalho), que nos anos 30 chegou a vender mais de 35 mil cópias; seu sucesso era tamanho que ela passou a ser chamada de "A Pequena Notável", graças a seu talento artístico.
          Carmem não era brasileira, era portuguesa de nascimento, e nem por isso via algo de errado em vestir-se de baiana e cantar sambas, ela queria mesmo era ser brasileira e por isso incluía em sua indumentária símbolos da cultura mestiça e popular. Esta maneira de Carmem Miranda nunca despertou críticas durante o inicio de sua carreira nos anos 20.
          Nos anos 30 o samba se consolidou como ritmo brasileiro enquanto Carmem atingia seu ponto alto de sucesso aqui no Brasil. Uma vez consolidando-se como música nacional, também aumentaram as cobranças em cima dos sambistas, em diversos setores, como já vimos. Carmem chegou aos Estados Unidos em 1939 voltando ao Brasil somente um ano depois para se apresentar em alguns lugares no Rio de Janeiro, entre eles o Cassino da Urca.
          Quando Carmem chegou ao palco, na noite de 15 de julho de 1940, ela cumprimentou a platéia com um sonoro: "Good Night, people!" (Boa noite, gente) e não obteve resposta da platéia. A partir daí começaram as represálias ao comportamento de Carmem Miranda, como nos mostra Hermano Vianna:

"A denúncia da americanização de Carmem Miranda mostrava que existia no Brasil de 1940 um movimento difuso que defendia a correta utilização desses novos símbolos nacionais. A mistura de samba com a música norte-americana, por exemplo, não podia ultrapassar certos limites. Já existia uma autenticidade a ser preservada no campo da cultura popular brasileira" (Vianna, 2002, p. 130).

          Carmem respondeu a este episódio com a música: "Disseram que eu voltei americanizada", de Vicente Paiva e Luiz Peixoto:

"E disseram que eu voltei americanizada
Com o burro do dinheiro
Que estou muito rica
Que não suporto mais
o breque do pandeiro
E fico arrepiada
ouvindo uma cuíca
Disseram que com as mãos estou preocupada
E corre por aí, que eu sei
Certo zunzum
Que já não tenho molho
ritmo, nem nada
E dos balangandãs já não existe mais nenhum

Mas pra cima de mim
pra que tanto veneno
Eu posso lá ficar americanizada
Eu que nasci com samba
e vivo no sereno
Topando a noite inteira
a velha batucada
Nas rodas de malandro
minhas preferidas
Eu digo é mesmo
Eu te amo
e nunca I love you
Enquanto houver Brasil
Na hora das comidas
Eu sou do camarão
ensopadinho com chuchu
!"

          Muitos estudiosos do tema, como Ana Maria Maud e Haroldo Costa, rejeitam a idéia de que Carmem Miranda deva ser considerada como americanizada. Eles justificam isto ao fato de os adereços de Carmem Miranda serem uma forma de representar o Brasil com seus mais diversos elementos culturais, mas que, uma vez que estes elementos passam pelo crivo de Hollywood, eles perdem a relação de nossa diversidade cultural como referência, passando então a idéia de "exagero". Juntando isso aos já famosos estereótipos mostrados nos desenhos e filmes produzidos nos Estados Unidos, a imagem de Carmem caiu em desgraça no Brasil.
          Mas as críticas existiram, como esta da revista Cruzeiro, de 22 de novembro de 1942, que reclamava do trabalho de Carmem em seu último filme:

"Ora, com Carmem Miranda cantando coisas detestáveis, com um péssimo 'maquillage', vestindo fantasias incrivelmente feias e 'dirigida' como se fosse uma alucinada, não vai bem. Ou melhor, vai muito mal, apesar de milhares de dólares de seu contrato, e que terão brevemente sabor amargo" (In Mauad, 2004, p. 60).

          A cada filme que ela fazia, mais críticas deste porte e até piores repercutiam no país. Pesquisas de opinião, enquetes etc. tudo que se ligasse ao trabalho de Carmem Miranda gerava isso. Os fãs de Carmem sempre desejaram que ela mudasse sua imagem para que tais críticas terminassem, ou seja, para que o público voltasse a vê-la com bons olhos. Um artigo na revista Scena Muda, de junho de 1943, defendia Carmem dizendo que rejeitá-la seria rejeitar a imagem do Brasil (Mauad, 2004, p. 60).
          Mais uma vez, vê-se que, essa contradição em torno da imagem da "Pequena Notável" é a forma que o público encontrava para discutir a imagem que eles consideravam mais adequada para representar nosso país.
          Durante os anos 30 Carmem Miranda chegou ao sucesso no Brasil, revelando-se já com seus trajes e jeito de baiana cantando músicas de muitos famosos compositores na época, como Ary Barroso. Com sua ida e grandioso sucesso nos EUA, virou referência cantando para o mundo músicas como "Tico-tico no fubá" (Zequinha de Abreu) e tantas outras. Para os brasileiros, a Pequena Notável estava se americanizando e com isso passou a ser exemplo de expropriação do samba pela indústria cultural, como se ela estivesse corrompida pelos valores norte-americanos que cada dia invadia mais a vida cultural do país.
          Com o fim da Segunda Guerra Mundial o Brasil e o mundo foram bombardeados com símbolos da cultura americana que, visavam antes de tudo, se impor como modelo para os demais países. Muitos eram os filmes norte-americanos, muitas eram as músicas, as orquestras etc, que acabaram por desencadear, em alguns setores da sociedade, uma grande crítica a esta "invasão" e até mesmo de alguns países latino-americanos que se sentiam ultrajados. Nada mais natural que:

"[...] a caricatura de Carmem/Brasil/América Latina, elaborada pelas demandas da política da boa vizinhança, compôs um quebra-cabeça continental com peças que não se encaixavam, sendo, por conta disso, rejeitada por grande parte do publico. Afinal, o Brasil nunca foi Cuba e a Bahia não é o Brasil; tampouco Carmem é baiana" (Mauad, 2004, p. 61).

          E, principalmente, nada mais natural que os símbolos "americanizados" de nossa cultura fossem criticados e nestes estava a figura de Carmem Miranda.

Giovana Papini
(Publicado Originalmente no site Brasileirinho)

 

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