Samba: Origens, transformações e indústria cultural (1916 - 1940)

 

Capítulo II - A legitimação do samba como síntese da cultura nacional

  2.1. Estado Novo: Contexto cultural e o samba como símbolo nacional

          Desde o final do século XIX aconteceu uma grande discussão por parte dos intelectuais acerca da unidade nacional. Enquanto uns ainda cultuavam a imagem de atraso cultural do país devido a suas origens mestiças, um movimento oposto começou a nascer e tentou-se mostrar justamente o contrário, que o mestiço era o verdadeiro responsável pelos laços que nos uniam. Figuras como Silvio Romero, Gilberto Freyre, Graça Aranha, Euclides da Cunha, Lima Barreto e outros permeavam toda esta discussão.
          Estes intelectuais contribuíram de alguma forma para se romper com a tradição romântica, o que trouxe à tona discussões sobre temas como a República e a Abolição. No mesmo momento, chegaram ao Brasil os ideais positivistas e as idéias acerca do evolucionismo de Darwin, formas de pensar que moldaram o pensamento intelectual do país da época. Começou então uma busca pelo entendimento do Brasil e de sua cultura.
          Exemplo disto é a obra Os Sertões, publicada em 1902 por Euclides da Cunha:

"[...] São absorvidos os determinismos científicos e todas as ideologias que o acompanham, adotam-se também ali as teorias sobre clima, solo, a mestiçagem, idéias duradouras de grande trânsito no horizonte cultural e que teriam vida longa no pensamento intelectual brasileiro, só vindo a ser questionado radicalmente pelos modernistas na década de 20" (Veloso e Madeira, 1999, p.76).

          Na primeira década do século XX o mestiço e as chamadas "civilizações tropicais" ainda eram tratados de forma estigmatizada por muitos de nossos intelectuais, ou seja, o mestiço era visto como o causador da inviabilidade de civilidade entre nós. Era comum a adoção de "idéias européias" sem uma postura mais crítica perante nossa realidade cultural, que estava em um nível tão diferente de desenvolvimento dos países europeus, e principalmente, porque nós vivíamos um importante momento quando a sociedade, e claro, os intelectuais eram "bombardeados" com novidades e novas modas trazidos com a expansão do capitalismo em nossas terras.
          Quando eclodiu a Primeira Grande Guerra, percebeu-se que os valores que até então a Europa ditava ao mundo foram afetados e novas formas de ver o Brasil passaram a ser estimulados. Este período, conhecido como pré-modernismo, foi a base para aquilo que se buscou com a Semana da Arte Moderna em 1922, ou seja, "... a abertura de possibilidades para a cultura brasileira..." (Veloso e Madeira, 1999, p. 88).

"[...] É importante mencionar o clima de renovação da década de 20, expresso nos embates sociais, político-militares e culturais que atravessaram, por aqueles anos, a agenda pública brasileira. Dele faria parte um inédito movimento de apreensão do país, de identificação da nossa singularidade nacional, arrastando diferentes segmentos de nossa intelligentzia ao Brasil profundo [...]" (Carvalho, M. A. R., 2004, p. 45).

          Nesse momento, quando realmente começou a se buscar as raízes culturais e históricas do país e a valorização de práticas culturais, a atenção era dada tanto para culturas populares quanto eruditas. As mudanças desencadeadas pelo movimento modernista possibilitaram também a criação de um fértil terreno para o surgimento, na década de 30, de obras de cunho social que pensaram o Brasil de forma moderna e inovadora. Nos anos 30 surgiram então, os livros Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, de 1936, e finalmente Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, de 1942, que hoje se tornaram obras clássicas.
          Neste período de nossa história, problemas relacionados à nação e à identidade nacional estavam em foco e o cerne da questão estava na temática do nacionalismo:

"A miscigenação [...] permanecia no centro de debates intelectuais que punham à mostra como a questão da identidade nacional se ligava umbilicalmente à temática racial. Nesse contexto é que o antropólogo Gilberto Freyre louvará a miscigenação brasileira como a simbiose de negros, índios e brancos com final supostamente feliz na história do Brasil" (Paranhos, 2004, p.23).

          O lançamento de Casa-Grande e Senzala deu força para a valorização do papel do mestiço, seja o caboclo do interior, seja o mulato urbano. (Vianna, 2002, p.71). Da mesma forma, o projeto iniciado pelos modernistas "de mostrar o lado autêntico da nação, conferir-lhe visibilidade, por meio de suas manifestações culturais" (Veloso e Madeira, 1999, p. 145) deu ao samba o espaço necessário para se desenvolver e posteriormente se legitimar enquanto símbolo da cultura brasileira.
          Assim como no plano cultural houve uma grande ruptura com a Semana de 22, no plano político esta ruptura se dará com a Revolução de 30, ou seja, com a República Nova. Quando a Revolução de 30 eclode e Vargas chega ao poder do Governo Provisório, é que se ouviu falar pela primeira vez que uma política visava à valorização da miscigenação e que era de fato defendida quase que oficialmente pelo Estado. "O que não significa que o Estado abandonava de vez sua tese de branqueamento, apenas fazia uso de uma retórica disfarçada de democracia racial". (Vianna, 2002, p. 73)
          Getúlio tinha uma política voltada para a abertura do país ao capitalismo, basta perceber que é neste momento, por exemplo, que se intensifica a aproximação entre Brasil e os Estados Unidos. Esta abertura ao capitalismo e seus ideais modernizantes para o país fazem com que ele crie a figura do "trabalhador número 1".
          A partir deste governo, toda a máquina política do Estado era voltada para uma campanha de propaganda política que projetou a imagem de Vargas como um grande líder nacional. O discurso de Getúlio Vargas era sempre coberto de menções à legislação social e aos trabalhadores, sendo estes últimos os responsáveis pela construção da pátria. "Os trabalhadores [...] seriam sempre mencionados como dotados de ânimo, interesse e capacidade" (Gomes, 1988, p. 242). Visava-se, com os discursos, inverter os valores negativos anexados à idéia de trabalho e, principalmente, a idéia do trabalhador brasileiro sempre visto como mau trabalhador.
          O governo procurou mostrar para a sociedade as contribuições dos trabalhadores ao país. A chamada "lei dos dois terços" é um bom exemplo disto: todas as empresas deveriam ter, no mínimo, este percentual de trabalhadores brasileiros, onde se destacava a presença do negro. Medidas de restrição ao trabalho imigrante confirmam que "toda essa legislação mostrava a preocupação cada vez maior do Estado brasileiro com sua 'integração étnica', nome oficial para a miscigenação" (Vianna, 2002, p. 73). Fica visível que o Estado tentava se colocar cada vez mais com uma postura de combate ao preconceito da cor. A eficácia deste tipo de propaganda, somada às questões do trabalhismo, renderam a Vargas a imagem de "pai dos pobres".
          O fato do "ser trabalhador" era o elemento que propiciaria a ascensão social, via profissão, seja financeira ou política. Quando isso não ocorria o elemento "honestidade" colocava de lado a problemática da pobreza. "Pobre, mas trabalhador" (Gomes, 1988, p. 242), era essa a mensagem enviada pelo Governo. Várias medidas confirmam os intuitos estatais de busca por uma mobilização do trabalho e do trabalhador, como a carteira profissional de trabalho, a legislação e a valorização da profissão.
          Começavam os sinais que alertavam os adeptos da malandragem para a censura que viria, provindo da relação entre este e o trabalho e claro, da importância que era dada ao trabalho pelo novo Governo. Os compositores se viram encurralados pela perseguição que sofriam por parte do Governo, principalmente nas letras dos sambas-enredo e nas temáticas referentes à malandragem.
          A censura ganhou até mesmo um departamento inteiro: o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), responsável pela vigília a tudo que não exaltasse o trabalho. Uma prova deste trabalho de repressão à "vadiagem'' é a Constituição de 1937 que estabelecia o trabalho como um dever social (artigo 136), por isso atitudes de greves e malandragem não eram aceitas pelo governo de Vargas.
          Ao mesmo tempo, o samba, enquanto símbolo de nossa cultura mestiça, passa a ser aos poucos institucionalizado pelo Estado. Um bom exemplo disto está no carnaval.
          No ano de 1937, em que começa o Estado Novo, a prefeitura carioca já patrocinava as escolas de samba.
          Esta ajuda do Estado a princípio era boa para os sambistas, já que a escola de samba sendo aceita oficialmente obtinha ajuda financeira e dava aos negros e mestiços uma maior ascensão social. Muitos estudiosos do tema, entre eles os já citados Nei Lopes e Adalberto Paranhos, acreditam que esta institucionalização, embora tenha elevado o samba a símbolo nacional, também atrapalhou o carnaval. Mais tarde viu-se que o verdadeiro intuito do Estado era colocar as escolas sob o poder de veto do DIP e principalmente, exigir a adequação do samba-enredo.

"A ditadura getulista demonstrava que o totalitarismo nacional não deixaria a desejar e o controle das escolas de samba passa a ser uma necessidade. Afinal, haviam se passado somente cinqüenta anos após a abolição da escravatura e os negros e mestiços livres penetravam cada vez mais nas brechas possíveis, entre as organizações carnavalescas. Se por um lado o Estado totalitário apoiava social e financeiramente as escolas de samba, por outro lado controlava" (Tramonte, 2001, p. 54).

          Enquanto se institucionalizava a escola de samba, se legitimava também o próprio samba como expressão máxima da cultura popular brasileira. Em um movimento inverso, o samba se viu mais perseguido e passível de censuras por parte do Estado. Ocorre que o Estado aceitava e propagava o samba como símbolo máximo de nossa cultura popular, desde que este estivesse dentro dos padrões e não atrapalhasse os ideais modernizantes do governo.

"[...] O governo buscava atrair os artistas para sua área de influência, usando a moeda de troca dos favores oficiais, a fim de tentar capturá-los na rede do culto ao trabalho. Houve, evidentemente, músicos populares que morderam a isca. Ainda que por um mero cálculo interesseiro ou em função de uma adesão, mais ou menos espontânea, ao regime, o que de fato se viu foi uma enorme safra de canções que enalteciam o mundo do trabalho, para não falar do Estado Novo e de sua personificação, Getúlio Vargas" (Paranhos, 2004, p. 17).

          O Governo Vargas sempre se caracterizou pela utilização de recursos que buscassem ajudar na exaltação do nacionalismo. Estes recursos variaram de projeção de filmes a alto-falantes em praças e, principalmente, a criação de veículos estatais responsáveis pela censura e a estatização de vários meios de comunicação. Entre eles está o já citado DIP e ainda o Departamento Oficial de Propaganda e outros tantos que trabalharam em favor do Estado Novo (Benevides, 2004).
          Nos anos 20, o rádio foi implantado no Brasil, ainda em fase de experimentação, voltado principalmente para atividades não comerciais. No inicio dos anos 30 uma mudança na legislação passou a permitir a publicidade no rádio, que fez com que as rádios passassem, cada vez mais, a se tornarem comerciais. Nos anos 40 a Rádio Nacional se tornou patrimônio da União controlada pelo Estado (Ortiz, 2001, p. 39). Foi criada a Orquestra Nacional com o Maestro Radamés Gnattali que "interpretava música brasileira com o mesmo tratamento destinado à estrangeira" (Benevides, 2004) e agregou instrumentos populares como o cavaquinho e o violão.
          É neste momento que se nota o surgimento de sambas que aderiram a esta imposição do Estado. O surgimento do samba exaltação é um bom exemplo de samba feito à época do Estado Novo, e do qual trataremos ainda neste capítulo.

2.2. O malandro no Estado Novo

          Nos anos 30, a música popular já tinha um bom campo de atuação com uma produção musical estável. Tais aspectos se devem principalmente pela já existente tradição musical interna, que figurava como modelo para as criações posteriores, mesmo sendo o Brasil um país extenso e com grandes diferenças regionais.

"As diferenças exalavam a nossa diferença; era possível então, no meio das mais variadas formas musicais, descobrir, quando não composições particularmente brasileiras, um estilo moreno e dengoso de cantar, uma malícia de sincopar a quadratura do compasso europeu, um jeito de corpo ao dançar" (Vasconcellos e Suzuki Jr, 1995, p.504).

          Começou a aumentar o público da música popular no Brasil. O samba enquanto estilo musical se tornou, com o passar do tempo, a expressão máxima desta música popular cuja temática personificou a figura comum da vida carioca, o malandro.
          Este figurou como o sujeito número um destas canções populares, justamente ele que é conhecido por sua aversão ao trabalho. Interessante observar então que, enquanto a afirmação de nossa música popular é contemporânea à formação das classes operárias no país, é o malandro quem aparece como personagem. A música de Nássara e Orestes Barbosa, "Caixa Econômica", de 1933, é um bom exemplo deste culto ao ócio:

"Você quer comprar o seu sossego
Me vendo morrer num emprego
Pra depois então gozar
Esta vida é muito cômica
Eu não sou Caixa Econômica
Que tem juros a ganhar.

Você diz que eu sou moleque
Porque não vou trabalhar
Eu não sou livro de cheque
Pra você descontar
E você vive tranqüila
Rindo e fazendo chiquê
Sempre na primeira fila
Me fazendo de guichê
(E você quer comprar o quê, hein?)

Meu avô morreu na luta
E meu pai, pobre coitado,
Fatigou-se na labuta
Por isso eu nasci cansado
E pra falar com justiça,
Eu declaro aos empregados
Ter em mim essa preguiça, herança
De antepassados.

          Nota-se que o trabalho enquanto tema comum nas canções populares aparece como uma imagem invertida, ou seja, a negação dos valores trazidos pelo trabalho é o tema principal, assim como o malandro o personagem. É como se a música popular ficasse à margem do trabalho pesado. A figura do compositor, por exemplo, ficou cada vez mais fundida com a imagem do malandro: samba e malandragem então passaram a ser sinônimos. Muitos estudiosos do tema contrariam a idéia de que esta associação se deva à origem social do compositor, tratando-se este de um critério que não explica o fenômeno da malandragem. O estilo de vida que um músico leva, ou seja, a boemia, a vida "mansa'', o desejo de felicidade e a sobrevivência fora da ordem comum de trabalho, seriam uma das explicações, como na letra de "O que será de mim" de 1931 (Nilton Bastos - Ismael Silva - Francisco Alves): "Se eu precisar algum dia/ De ir pro batente/ Não sei o que será/ Pois vivo na malandragem/ E vida melhor não há".
          Assim como a letra de "Nem é Bom Falar", dos mesmos autores que, também em 1931, diz:
          "Nem tudo que se diz se faz/ Eu digo e serei capaz/ De não resistir/ Nem é bom falá/ Se a orgia se acabá"
          Há músicas que também retratam a vontade do sambista de largar a vida boêmia e a malandragem, intuito que só aflora devido ao surgimento de uma mulher. Ou seja, a vida de malandragem não tem mais valor quando se está apaixonado. É o que se pode notar na música "A Malandragem'' de Bide e Francisco Alves, de 1927:

"A malandragem eu vou deixar
Eu não quero saber da orgia,
Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia

Mulher igual
para a gente é uma beleza
Não se olha a cara dela
Porque isto é uma defesa
Arranjei uma mulher
Que me dá toda vantagem
Vou virá almofadinha
Vou deixar a malandragem

Esses otário
que só sabe é dar palpite
Quando chega o Carnaval
A mulher lhe dá o suíte
Você diz que é malandro
Malandro você não é
Malandro é Seu Abóbra
Que manobra com as mulhé
"

          Deve-se perceber o fato de que ocorre uma dualidade na sociedade brasileira. Havia o malandro de um lado, personagem à margem da vida capitalista e da moral pregada pelo sistema e, de outro lado, os trabalhadores, que fortaleciam e legitimavam o sistema capitalista e o governo Vargas. O malandro, por sua relação com o trabalho, encontra-se no caminho entre o sofrido proletariado e o novo capitalista que se integram ao sistema. A letra da música "Filosofia", de Noel Rosa e André Filho, lançado em 1933, retrata bem esta problemática:

"O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba
Muito embora vagabundo
Quanto a você
Da aristocracia
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hipocrisia
"

          Na música vê-se que, embora lutasse para negar, o malandro "submetia-se ao sistema, pois era o sistema que legitimava sua existência" (Vasconcellos e Suzuki Jr, 1995, p. 509). Nota-se que o sambista lamenta quando constata que querem dizer a ele como ser feliz, como se portar para ser bem aceito pela sociedade, o que lhe causa bastante tristeza.
          Há aspectos relevantes na problemática do culto à malandragem feita pelos próprios sambistas. Como vimos, no fim dos anos 20, o malandro e a malandragem começam a aparecer bastante nas letras de sambas e nos anos 30 o samba já era definido como "a melodia do malandro'' de tão associado que ele estava ao ritmo.
          Aparece então Noel Rosa, que não concordava com esta identificação do sambista na figura do malandro. A temática da malandragem prossegue em suas letras, só que com maior sensibilidade. "No poeta de Vila Isabel, a expressão do malandro na canção popular brasileira atinge suas dimensões mais profundas, revelando as asperezas da experiência, as angústias que provocavam uma nota dolorosa na vadiagem e na destemperada orgia'' (Vasconcellos e Suzuki Jr, 1995, p. 509). Um outro traço então deste estilo de vida começa a ser retratado nas letras de Noel Rosa, o que faz com que o malandro consiga ainda mais espaço na música popular, já que se mostra o lado mais humano, que aproxima o personagem ainda mais da realidade pessoal de cada um.
          Sandroni pontua que a temática do malandro não se fez sem problemas:

"A adoção da malandragem como definição identitária pela geração de sambistas que criou e desenvolveu o novo estilo não se fez sem conflitos [...] vimos que a temática malandra, num grupo significativo de sambas, era ao mesmo tempo a do abandono da malandragem" (Sandroni, 2001, p.169).

          Da mesma forma, a questão da identidade do malandro permeou outro conflito, entre Noel Rosa e Wilson Batista. Em 1933 Wilson Batista compôs "Lenço no Pescoço", samba que descreve o malandro com suas características típicas, entre elas a da malandragem, e a preferência musical pelo gênero:

"Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
(Comigo não
Eu quero ver quem tem razão)

E ele toca
E você canta
E eu não tô
."

          Como já foi citado, Noel Rosa não concordava com essa imagem do malandro estigmatizado, ele costumava falar do malandro de uma forma mais amena e menos caracterizada. Assim, em resposta a sua insatisfação com seu colega, Noel escreve também, em 1933, a canção "Rapaz Folgado":

"Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha
Que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.
"

          É clara a intenção de Noel nesta música em contestar a identificação dos sambistas com o malandro. A réplica veio por parte de Wilson Batista com o samba "Mocinho da Vila" de 1934. Noel continuou com a polêmica compondo a famosa canção "Feitiço da Vila" em 1934:

"Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos/Do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café,
Minas dá leite/E a Vila Isabel dá samba

A Vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente

O sol na Vila é triste,
Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus, Não venha agora
Que as morenas vão logo embora
Eu sei tudo que faço,
Sei por onde passo
Paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte,
Meus senhores,
Eu sou da Vila!
"

          As discussões prosseguiram em forma de música, com a canção "Conversa Fiada" de Batista e "Palpite Infeliz" de Noel, ambas de 1935. O conflito só se acalmou quando Noel não responde a Batista, que na ocasião havia escrito "Frankenstein da Vila" que falava do problema físico de Noel Rosa, fato que foi muito criticado na época.
          Como já vimos, no Estado Novo era grande a perseguição a este tipo de samba, adepto da malandragem. Ou seja, o samba que não enaltecia o trabalho ou os novos aspectos da vida capitalista que Getúlio empenhava-se em efetivar. Como faziam então, os compositores populares, cultuadores da malandragem, para burlar a repressão imposta pelo Estado Novo? A solução estava na "maquiagem" das letras dos sambas: todo o desprezo pela vida de trabalhador encontrava-se exposto de forma ambígua.
          Durante este período em que as obras eram submetidas ao DIP, por exemplo, os discos gravados em 78rpm tinham número de registro no Departamento de Imprensa e Propaganda. Muitas foram as gravações que burlavam tais limites, revestindo as letras com duplo sentido (Paranhos, 2004, p. 17). A ironia perante as mazelas da vida, que já era comum nos sambas, se intensifica através da recusa ao trabalho.
          Mesmo assim, o malandro continuava a sobreviver nas composições e as produções que retratassem a problemática do malandro/trabalho aumentavam. Muitas músicas retratavam trabalho como um sacrifício, assim como a péssima remuneração. Esta constatação de rica produção musical que burla a repressão do Estado Novo nos mostra que, contrariando o que foi afirmado durante muito tempo pelos estudiosos sociais, poucos foram os compositores que aderiram às imposições estatais.
          Outro aspecto comum a esta época são as letras de músicas que mostram as mulheres insatisfeitas com seus companheiros. Estes, normalmente, eram retratados com sua aversão ao trabalho. Adalberto Paranhos levanta na revista Nossa História (fevereiro de 2004) em seu artigo titulado: Os desafinados do samba na cadência do Estado Novo um novo olhar sobre esta questão. Para ele, estas letras retratam justamente o inverso daquilo que muitos cientistas sociais vem afirmando ao longo dos tempos, de que estas músicas são provas da aderência por parte dos sambistas às imposições estatais. A letra de "Sete e meia da manhã", de 1945, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz é dada como exemplo:

"Estou atrasada
E se não for para o batente
Ele vai me dar pancada
Estou tão cansada
De ouvir todo dia
A mesma toada
O apito da fábrica a me chamar
Levanta da cama e vem trabalhar
Mas que viver desesperado
"

          Como afirma Adalberto Paranhos, esta letra é mais uma composição "maquiada" de assimilação da mensagem governamental, que na verdade faz uma crítica ao trabalhismo exaltado por Getúlio e que se encontra distante do "elogio ao trabalhador" (Paranhos, 2004, p. 18). Basta observar quando a música diz: "Estou tão cansada/ De ouvir todo dia/ A mesma toada/ O apito da fábrica a me chamar".
          Aqui, o trabalho é tido como um sacrifício e não como algo regenerador e fonte de orgulho.
          É claro que o DIP impunha uma censura bastante rígida à produção musical da época. Mas isso não significou que toda produção artística obedeceu à opressão e não conseguiu burlar os limites impostos. Mesmo sem saber se esta resistência constatada nas letras dos sambas produzidos nesta época se dava de forma consciente, a verdade é que ela existiu.

2.3 - Ary Barroso e o samba exaltação

          O samba exaltação é caracterizado pelo seu caráter grandioso, composto por letras ufanistas e com grande arranjo orquestral. O caráter grandioso sugerido no samba exaltação vem justamente da roupagem orquestral dada à música e complementado pela letra complexa e exaltada, que cantava sempre as belezas do Brasil.
          O maior nome deste tipo de samba é Ary Barroso. Nascido em Ubá, Minas Gerais, em 7 de novembro de 1903, seu pai era o deputado estadual João Evangelista e a mãe era Angelina de Resende Barroso. Fica órfão aos seis anos e passa a ser criado pela avó e pela tia materna. A tia o ensina piano e devido a dificuldades financeiras Ary passa a ajudar a tia, aos doze anos, fazendo fundo musical para as fitas do Cinematógrafo Ideal.
          Aos dezessete anos se muda para o Rio de Janeiro onde faz faculdade de Direito, conseguindo se formar somente em 1930, oito anos após sua entrada. Manteve seus estudos com o mesmo tipo de trabalho, fazendo fundos para cinema mudo. Logo surgiram outras oportunidades, por ele ser um bom pianista, passou assim a tocar em orquestras (História da MPB, 1982, p. 3).
          O fato de ter tocado em orquestras influenciou seu estilo de compor, caracterizado por grandes arranjos. Escreveu, em 1939, "Aquarela do Brasil" música que ficou marcada como o seu grande sucesso até os dias de hoje:

"Brasil
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Ô Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingá
Ô Brasil do meu amô
Terra de Nosso Sinhô
Brasil! Brasil!
Pra mim... pra mim

Ó abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado
Brasil! Brasil

Pra mim... pra mim

Deixa cantar de novo o trovador
À merencória luz da lua
Toda canção do meu amor
Quero ver a 'sá dona' caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado
Brasil, pra mim,
Pra mim, pra mim
Brasil

Brasil
Terra boa e gostosa
Da morena sestrosa
De olhar indiscreto
Ô Brasil verde que dá
Para o mundo se admirá
Ô, Brasil do meu amô
Terra de Nosso Sinhô
Brasil! Brasil!
Pra mim... pra mim

Ô esse coqueiro que dá coco
Oi onde eu amarro minha rede
Nas noites claras de luar
Brasil! Brasil!
Ô oi ouve essas fontes murmurantes
Ôi onde eu mato a minha sede
E onde a lua vem brincá
ôi, esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro
Brasil! Brasil

Pra mim... pra mim...
"

          Essa música caracterizou sua fase grandiloqüente, que começou com as músicas "Na Baixa do Sapateiro", "Brasil Moreno" e "Terra Seca" todas compostas entre os anos de 1938 e 1943.
          Antes disso, em 1932, Ary foi convidado por um amigo, o radialista Renato Murce, a ingressar na Rádio Philips como pianista. Logo ele se tornou locutor, inclusive esportivo, animador e humorista, mudando de rádio várias vezes. Quando Ary estava trabalhando na Rádio Cruzeiro do Sul, em 1937, começou o seu programa de calouros que devido ao sucesso seria mais tarde levado para a Tupi e chegou à televisão.
          Mesmo com tanta popularidade, a princípio "Aquarela do Brasil" não obteve sucesso, quando foi lançada na voz de Araci Cortes, tornando-se conhecida somente na voz de Francisco Alves. A música chegou a ser muito criticada e ironizada na época por ter versos como: "Esse coqueiro que dá coco". Também era criticado pelo uso de palavras pouco comuns e usuais como "inzoneiro" e "merencória", o que, para muitos, afastavam o samba do popular.
          Ary conta que compôs "Aquarela do Brasil" em uma noite chuvosa e inquieta, foi ao piano disposto a fazer uma coisa grande e diferente. E conseguiu, a música "Aquarela do Brasil" foi gravada por grandes orquestras e cantores do mundo inteiro, chegando a ser fundo musical do desenho de Walt Disney Alô, Amigos, cujo personagem principal era o hoje famoso Zé Carioca. Walt Disney escutou pela primeira vez a canção em um hotel em Belém do Pará. Mais tarde, entusiasmado com as músicas de Ary, Disney incluiu no desenho Você já foi à Bahia? as canções "No Tabuleiro da Baiana":

"- No tabuleiro da baiana tem...
-Vatapá, oi, caruru
Munguzá, tem umbu
Pra Ioiô
- Se eu pedir você me dá
O seu coração, seu amor de Iaiá?
"

          E outra canção chamada "Os Quindins de Iaiá": "Os quindins de Iaiá/ Comé, comé, comé/ Os quindins de Iaiá/ Comé/ Comé que faz chorá?"
          Com isso, Ary ganhou notoriedade internacional e foi chamado a Hollywood para musicar alguns filmes, chegando a ser indicado ao Oscar. Pouco a pouco, os brasileiros viajados chegavam aqui para contar que tinham ouvido a "Aquarela" na Turquia ou nas Filipinas (História da MPB, 1982, p. 8). Por essas e outras Ary é considerado o primeiro compositor a abrir as portas do Brasil "lá em cima".
          Uma questão polêmica referente ao samba exaltação está no fato dele estar nos moldes do governo estado-novista. As letras reverenciam os aspectos belos do país, tratando de forma ufanista as "coisas nossas".

"No auge do Estado Novo, esses sambas eram, em geral, feitos sob inspiração do órgão de propaganda do governo e lançados no teatro de revista, para exaltar as virtudes da terra e do povo brasileiro" (Lopes, 2003, p. 19).

          Tal aspecto da aceitação deste tipo de samba pelo órgão de propaganda do governo de Vargas estabeleceu uma distinção entre os sambas. Os sambas de Ary Barroso, por exemplo, eram "considerados evoluídos, por seu tom nacionalista" (Paranhos, 2004, p. 21) e chamados de "samba positivo". Os considerados "samba negativo" eram caracterizados por letras que se identificassem com a temática do malandro e da malandragem.
          Bom exemplo desta distinção entre os sambas está nos artigos feitos pela revista Cultura Política, veículo disseminador da doutrinação da Era Vargas, que coloca as seguintes opiniões:

"Não toleremos os moleques peraltas, dados a traquinagens de toda a espécie. Entretanto, não os eliminamos da sociedade: pedimos escolas para eles. A marchinha, o samba, o maxixe precisam, unicamente, de escola" (citado por Paranhos, 2004, p. 21).

"No Brasil, a Divisão de Rádio do Departamento de Imprensa e Propaganda vem realizando, sem desfalecimentos, uma obra digna de encômios. Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corruptora da linguagem nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. E, não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui pelas estações dos Estados gravações de música fina, com noticiário de interesse coletivo" (citado por Paranhos, 2004, p. 21).

          O "samba positivo" foi bem tratado pelo Estado Novo, tanto que era tocado nas rádios pelo país, sendo até os anos 50 um grande sucesso. A principal figura deste estilo musical era Ary Barroso e a música "Aquarela do Brasil" seu símbolo maior.
          A popularidade de Ary era grande. Como membro da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) defendeu arduamente os direitos autorais. O resultado de sua popularidade e luta pelos direitos autorais se reflete no grande número de gravações de suas músicas. No anuário da SBACEM, Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música, de 1957, ele apareceu em segundo lugar entre os compositores que mais receberam em direitos autorais, perdendo para Haroldo Lobo apenas. No ano de 1942 ajudou a fundar a UBC (União Brasileira de Compositores) sendo seu primeiro presidente. Em 1946 começa de verdade uma "vida pública" ganhando as eleições como vereador do Rio de Janeiro, quando foi candidato pela UDN, com a segunda maior votação, perdendo somente para Carlos Lacerda.
          Praticamente, Ary Barroso não compôs na década de 60, dizia que não queria entrar na disputa desonesta da TV e fazer parte da institucionalização das músicas carnavalescas, o que fez com que ele se afastasse do carnaval: "não sou homem de andar por aí pedindo que toquem minhas músicas. Nem vou dar dinheiro a ninguém para botar meu disco na vitrola" (citado em História da MPB, 1982, p. 6).
          No seu programa Ary prestigiava os calouros cujo repertório era voltado para o nacional e criticava aqueles que americanizavam o samba. Nos anos 60, se dizia descontente com os rumos que a MPB seguia, considerando que o samba nesta época estava "pobre", referindo-se ao novo estilo, "sambolero": "nunca o samba esteve tão por baixo. Chegamos à era do bolero, do rock, do chá-chá-chá, do twist e outras torceduras" (citado em História da MPB, 1982, p. 6).
          Faleceu em 9 de fevereiro de 1964, vítima de uma cirrose hepática, em pleno carnaval e ano que estava sendo homenageado pelo Império Serrano. Continua a ser um famoso compositor dentro e fora do país até os dias de hoje.
Ary é o nome responsável pelo grande sucesso do samba no rádio entre as décadas de 30 e 50, que mudaram os rumos da música brasileira através de sua propagação.

Giovana Papini
(Publicado Originalmente no site Brasileirinho)

 

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