G.R.E.S.Mangueira
Das águas do Velho Chico, nasce um rio de esperança

 

O Enredo no Samba: Estrutura discursiva

          Os compositores da Mangueira nos brindam com um samba primoroso, gostoso de ouvir e, principalmente, de cantar. Esta ode ao Rio São Francisco prova que, mesmo presos às coordenadas de uma sinopse, ainda é possível a elaboração de sambas surpreendentes, verdadeiras obras resultantes da competência, talento e, sobretudo, sensibilidade dos tão criticados compositores atuais.
          No samba, podemos perceber as principais informações passadas pela excelente explanação do carnavalesco em uma sinopse que resvala poesia. E como artistas da palavra, os compositores conseguiram transpor o enredo abordado com versos sugestivos e com imagens poéticas que resumem inteligentemente todos os fatos e as características referentes ao famoso Rio São Francisco.
          Um texto cujo didatismo extremado permitirá a muitos professores a sua utilização em sala de aula. Isso pode ser comprovado pela séria pesquisa realizada por seus autores, visto que citam a palavra “integração”, ausente na sinopse e entre aspas no samba, para sutilmente fazerem alusão - em que se subentende-se uma crítica ou elogio conforme leitura - aos vários projetos do governo brasileiro de usar as águas do Velho Chico para fazer a integração das bacias hidrográficas, com o propósito de garantir vida sustentável nas regiões semi-áridas do sertão. Convém lembrar que o recém criado Ministério da integração Nacional do atual governo está investindo no mesmo projeto de revitalização do Rio São Francisco.
          Como de praxe, a agremiação tem um samba alegre, festivo, que ressalta o valor da escola, o orgulho e a vaidade de seus componentes, clamando-os para, em “oração”, defenderem sua “bandeira” e as cores “verde e rosa” da agremiação.

O Samba no Enredo: Estrutura lingüística

          A letra do samba possui um evidente refinamento textual. Fato que pode ser confirmado pela precisa seleção vocabular, pelo emprego abusivo de expressões que remetem a belíssimas e sugestivas imagens, por frases bem construídas com distribuição perfeita da mensagem referente ao enredo abordado e ainda pela constituição melódica dos versos, alcançada por meio de uma esmerada metrificação.
          O vocabulário do samba é constituído por palavras da sinopse e por outras selecionadas pelo próprio compositor, diretamente relacionadas à palavra rio, o personagem geográfico apresentado pela escola: navegar, águas, rio-mar, navegador, carranca, embarcação, piracema, cachoeiras, flutuante, irrigação, banhou, transbordou.
          Há diversas expressões que traduzem liricamente conceitos e imagens presentes na sinopse do carnavalesco, dentre elas, destacamos:

  • “Nas águas da integração chegou Mangueira” = este verso faz referência à integração da diversidade humana e cultural feita por onde o Rio São Francisco passa, além de aproximar o sertão do litoral. E faz ainda referência ao projeto de governo de revitalização do Rio São Francisco.

  • “Ilumina o destino, vai cumprir sua missão” =  o destino de iluminar a vida das populações por onde o Rio passa, cumprindo sua missão de ser útil a uma sofrida parcela do povo brasileiro.

  • “Se expande para mostrar sua grandeza” = de um filete na fonte lá na serra da Canastra, de acordo com a sinopse, cresce para os lados, aumentando seu volume d´água, passando por vários estados brasileiros.

  • “Gigante pela própria natureza” = estes famosos versos do nosso hino nacional couberam como uma luva ao Rio São Francisco. Originalmente referindo-se ao tamanho continental de nosso país, aqui também hiperboliza o homenageado. Natureza tem significado ambíguo: refere-se à particularidade do rio de ser grande e também sua composição natural, isto é, ser elemento da natureza.

  • “A carranca na Mangueira vai passar” = a carranca é um símbolo das embarcações do rio homenageado que, apesar de normalmente ser feia, tem a função de proteger contra todos os males. No caso, a carranca desempenha o papel de afastar as energias negativas para que a agremiação consiga o desejado campeonato, confirmado no seguinte verso: “Ninguém desbanca minha embarcação”.

  • “Porque o samba é minha oração” = verso polissêmico, pois ao mesmo tempo em que ressalta a importância do samba para os componentes e para a escola, remete à religiosidade típica do sertanejo e ao próprio santo que dá nome ao rio.

  • “Beleza o bailar da piracema” = a expressão “o bailar da piracema” é extremamente poética, sugere uma dança dos peixes durante o curioso fenômeno da reprodução da espécie, período em que os peixes nadam contra a correnteza para realizar a desova.

  • “Lendas ilustrando a história” = os autores preferiram apenas citar a existência de lendas sobre seres fantásticos e fatos históricos (presentes na sinopse) associados ao Rio São Francisco.

  • “Memórias do valente Lampião” = a citação de Lampião é propícia, visto ser uma figura símbolo  de resistência do sertanejo.

  • “E tem frutas de primeira pra saborear” = bastante interessante a forma como os compositores conseguiram expressividade em verso aparentemente simples: se referem à fruta (manga) citada na sinopse e à própria escola, com o emprego da expressão “de primeira”, isto é, as frutas de primeira qualidade, estendendo-se para a Estação Primeira de Mangueira, escola reconhecidamente de primeira qualidade.

  • “O sertanejo sonhou / banhou de fé o coração / e transbordou em verde e rosa / a esperança do sertão” =  neste admirável refrão, a palavra sonho tanto pode ser interpretada como a euforia e o delírio típicos da festa carnavalesca representada pelo desfile da Mangueira, quanto como a ilusão do sertanejo, traduzida pela palavra esperança, de ter uma vida melhor com a utilização das águas do Rio São Francisco. E o acertado emprego do verbo transbordar sugerindo a época da cheia do rio em questão.

          As figuras de linguagem, como a gradação (idéias em progressão), a personificação (predicados e ações próprios de seres animados) e a metáfora (comparação implícita que remete a outros significados), notabilizam a composição como peça literária:

Gradação e personificação: “Na serra ele nasce pequenino”
até “se expande pra mostrar sua grandeza”
Metáforas: “Nas águas da integração chegou Mangueira”
“Ninguém desbanca minha embarcação
porque o samba é minha oração”
“Banhou de fé o coração
e transbordou em verde e rosa”

          Enfim, um samba com uma arrebatadora cadência, alcançada pela disposição de rimas ricas (entre palavras de classes gramaticais diferentes), internas (no interior dos versos) e externas (no final dos versos) que produzem grande efeito musical e rítmico:

“Mercado flutuante, um constante vai-e-vem
Violeiro, sanfoneiro, que saudade do meu bem

Julio Cesar Farias
Julio é professor, escritor, pesquisador da linguagem na cultura popular, colaborador do Centro de Memórias do Carnaval da LIESA e membro do conselho Consultivo do Instituto do Carnaval da Universidade Estácio de Sá.

 

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