G.R.E.S.Mangueira
Mangueira redescobre a Estrada Real e faz deste eldorado seu carnaval

 

O Enredo no Samba: Estrutura discursiva

          O samba-enredo é constituído por dois seguimentos narrativos. Na primeira parte, temos uma proposição própria do discurso épico, em que o narrador apresenta o tema do enredo, mostrando o início de sua onírica viagem pela Estrada Real, que era um conjunto de trilhas intercruzadas ligando São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com pequenos indícios do que ela representou em sua áurea época. Na segunda parte, logo após o primeiro refrão, há referências à culinária de uma ponta a outra da referida Estrada, a comida mineira e a cachaça de Parati. O mais importante, porém, são os fatos históricos citados que localizam a época que o enredo quer retratar no desfile.

O Samba no Enredo: Estrutura lingüística

          Todo o samba tem como condutor do enredo um narrador em 1a. pessoa, que faz com que cada desfilante seja inserido na viagem fictícia ao cantar o samba. É um expediente lingüístico bastante explorado
na MPB e pelos compositores da Mangueira nos últimos anos. Com isso, ao ressaltarem o valor da Escola, passam o orgulho aos seus componentes de pertencerem à agremiação (“Eu vou embarcar/ na Estação Primeira”).
          O narrador começa tratando a Estrada Real/ Minas Gerais corretamente por TU (com quem se fala): “Teu chão é um retrato da história”, mas por uma questão de pronúncia do refrão muda para VOCÊ, imprimindo também um tom de intimidade ao caminho e ao lugar percorrido: “Das suas águas provei”. Mas, no final da letra retoma a 2a. pessoa do singular com o verbo ser, numa reverência ao Estado de Minas Gerais:  “És um berço de cultura, és raiz”.
          Os autores desmembraram a expressão “Estrada Real”, que representa a estrada principal de uma região, imprimindo a cada palavra um novo significado, facilmente compreendido pelas associações das palavras nos versos:

  • A estrada do sonho =  a) remete, historicamente, ao sonho de riqueza dos viajantes que por ela passaram.
    b) no carnaval, o enredo é sempre tratado como um sonho, um devaneio de  todos os participantes da folia.
     
        Real desejo de poder e ambição = A palavra “Real” tanto pode significar de rei, lembrando o período colonial, quanto verdadeiro, que realmente existiu.

          O samba segue uma linha melódica adequada ao compasso habitual da bateria da Escola, pois não é corrido e tem uma cadência aos moldes de outros sambas da Mangueira
          Quanto à letra, ressaltamos o emprego de versos curtos, com verbos de ação que auxiliam na fluidez narrativa, de modo que visualizamos perfeitamente todo o percurso da viagem, como se estivéssemos em movimento como o narrador.
          Há inversões vocabulares para frisar certos elementos do enredo e também para constituir a rima, como em:

  • “Por belos recantos andei”    =   Andei por belos recantos

  • “Das suas águas provei”         =   Provei das suas águas

  • “Na arte eu vi obras que o gênio esculpiu” = Eu vi obras que o gênio esculpiu na arte

          Há uma aliteração, no mínimo, curiosa no verso “Se a pinga não pegar”, em que as palavras PINGA e PEGAR tornam o verso ritmado ao repetirem as consoantes oclusivas P e G.
          Os autores ainda abusam de imagens belíssimas para dizer com poucas palavras o que precisaria ser dito com frases extensas:

  • “Real desejo de poder e ambição”

  • “As trilhas bordadas em ouro”

  • “Teu chão é um retrato da história”

  • “Igrejas, o barroco emoldura o Brasil”

  • “Ó, Minas! / És um berço de cultura, és raiz”

          A metáfora mais interessante, no entanto, está no refrão principal do samba, em que os autores magistralmente utilizam-se da semântica para que se possa fazer diversas leituras do que é dito:

  • “Eu vou embarcar / na Estação Primeira / Tesouro do Samba, minha paixão / Ê, trem bão!”

          Em uma leitura mais profunda, percebemos que o emprego do verbo embarcar sugere a entrada em uma embarcação, no caso o trem da ferrovia construída para encurtar o tempo de viagem do ouro entre o Rio de Janeiro e Vila Rica. Antes se utilizava apenas as trilhas da Estrada Real.
          Mas, ao mesmo tempo, temos a referência à Estação Primeira, no caso à história que deu origem ao nome da Escola, pois era a Mangueira, na época, a primeira estação a partir da gare D.Pedro II, citada em um samba de cartola. E, por fim, a expressão regional “Ê, trem bão!”que faz, num elogio, a fusão da agremiação com o lugar de origem da Estrada Real, o Estado de Minas Gerais. A estrada Real levava tesouros financeiros e a Mangueira agora é o “Tesouro do Samba” levado  pelo trem (“bão”).
          Os compositores não se importaram com a redundância vocabular. Há palavras que se repetem na letra sem comprometer a qualidade do texto:

  • Brilho                                 -           Brilha

  • “Levaram um tesouro...”       -           Tesouro do samba”

  • “Hoje eu descubro...”           -          Eu chego ao Rio...”

  • “Na arte eu vi...”                  -            “Eu vou embarcar...”

          Quanto ao vocabulário, temos a presença de palavras-clichês próprias de sambas-enredo: Brilho – sonho – mar – hoje – beleza – paixão.
          Nota-se ainda que os autores, apesar do tom afetivo do texto, não utilizaram a linguagem coloquial, como as reduções vocabulares e termos e construções próprios da linguagem oral. Mesmo assim, a disposição das palavras nos versos não dificultam a pronúncia no canto, que flui no compasso da Escola.

Bibliografia:

  1. “Enredos – Rio Carnaval 2004” , da LIESA.
  2. “História do Brasil”, Luiz Koshiba e Denise Pereira.
  3. “Carnaval – Seis Milênios de História”, Hiram Araújo.
  4. “Para Tudo Não Se Acabar Na Quarta-Feira – A Linguagem do Samba-Enredo” – Julio Cesar Farias

Julio Cesar Farias
(Publicado em 18/11/2003)

 

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