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O Enredo no Samba: Estrutura discursiva
O samba-enredo divide-se em três partes distintas porém interligadas. As lendas dos deuses africanos, são contadas pela fusão narrativa mito/realidade, visto que personagens reais são divinizados ao mesmo tempo em que deuses são desmitificados nas figuras desses portelenses famosos.
O enredo tem caráter metalingüístico, uma vez que faz referência à história da Portela, a seus personagens e ao próprio carnaval. O samba é uma exaltação à Portela, Escola que originou a Tradição. Por isso consta aí também uma homenagem às raízes da própria Tradição, com a escolha de reviver esse enredo.
A letra do samba inicia-se com a louvação à Bahia, considerada o berço da cultura afrobrasileira e onde a História do Brasil começou. O caminho seguido pelos autores para a referida fusão realidade/fantasia está na apresentação de deuses cultuados originalmente e principalmente na Bahia, Oraniah, Oxosse e Iansã, representados por três ilustres personagens portelenses na Avenida.
O primeiro, Paulo da Portela, representa o Criador do Mundo, Oraniah, numa alusão a ser ele o fundador da agremiação azul e branca. O segundo portelense, Natal, devido a sua profissão de dono de banca do jogo de bicho, representa Oxosse, o Caçador morador das matas. A terceira personagem, a cantora Clara Nunes, com características próprias de uma deusa, conhecida como mulher guerreira, pioneira em diversas áreas e defensora fervorosa da Portela, representa Iansã, Orixá dos ventos e da tempestade.
O Samba no Enredo: Estrutura lingüística
O discurso épico que permeia o samba-enredo Contos de Areia dá-se do seguinte modo: foram escolhidos três das maiores personalidades portelenses de todos os tempos para representarem deuses africanos. A mitificação dessas personagens parte de suas ações, pois são sujeitos agentes, marcando a individualização e a importância de cada um, heroicizados pela grandiloqüência dos qualificadores dos orixás presentes na letra, conforme podemos visualizar no esquema:
Plano Maravilhoso |
Oraniah, Criador do Mundo |
Oxosse, Caçador |
Iansã, |
Deus negro |
morador das matas |
deusa dos ventos e tempestade |
Paulo da Portela |
Natal |
Clara Nunes |
Fundador da Portela |
Dono de banca de jogo do bicho |
Cantora, ilustre defensora da Portela, |
compositor |
Presidente de Honra |
Referência à rua sede da Escola |
Plano Histórico As personalidades portelenses, portanto, freqüentam simultaneamente os planos histórico e maravilhoso.
Conto de Areia
(1978 : Romildo e Toninho)
“Contam que toda a tristeza que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos molhados de mar
Não sei se é conto de areia ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia pra gente cantar”
Quanto à seleção vocabular, cabe lembrar que muitas das palavras e expressões são provenientes principalmente da carreira de Clara Nunes. Dentre as personalidades representantes dos deuses, ela é a mais citada na letra:
“Bahia é um encanto a mais” |
Numa viagem à África, Clara Nunes entrou em contato com a Umbanda, sua religião, e com os ritmos afros. A Bahia é o principal celeiro da cultura afro. |
“Visão de aquarela” |
Clara canta que a Portela “parece a maravilha de aquarela que surgiu”, na música-exaltação Portela na Avenida. |
“E no ABC dos orixás” |
referência explícita ao primeiro concurso de que clara participou, chamado “A Voz de Ouro do ABC”. |
“Portela é canto no ar” |
Dos três homenageados, Clara Nunes é a única que canta.
“É cheiro de mato” = O cheiro de mato alude às raízes da cantora, o interior de Minas Gerais.
“É terra molhada” = Segundo contam, Clara gostava de ter os pés descalços na terra molhada.
“É Clara guerreira” = Referência ao álbum “Guerreira” da cantora, de 1978. |
“É cheiro de mato”
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O cheiro de mato alude às raízes da cantora, o interior de Minas Gerais. |
“É terra molhada” |
Segundo contam, Clara gostava de ter os pés descalços na terra molhada. |
“É Clara guerreira” |
Referência ao álbum “Guerreira” da cantora, de 1978. |
O samba-enredo apresenta versos curtos e afirmações categóricas, com o emprego de predicados nominais para enfatizar a opinião elogiosa dos autores:
“Bahia é um encanto a mais” |
“Oraniah é Paulo da Portela” |
“Portela é canto no ar” |
O verbo fazer, sempre transitivo, constante em toda a letra do samba assinala a feição épica do texto. O ‘fazer' das personagens homenageadas e, por tabela, da própria agremiação, constitui o fator mais importante, revelando o sujeito agenciador da ação.
Destacam-se ainda as inversões vocabulares com a função nítida de enfatizar idéias no sintagma frasal e construir a rima:
- “Um mundo azul e branco / O Deus negro fez nascer” = O Deus negro fez nascer um mundo azul e branco.
- “Pois vinte vezes venceu” = Pois venceu vinte vezes.
- “Na ginga do estandarte / Portela derrama arte” = Portela derrama arte na ginga do estandarte.
Observa-se também que os compositores evitaram o uso de artigos, pois quebrariam a harmonia melódica do verso, dificultariam a oralidade do enunciado e comprometeriam o ritmo:
- “# Bahia é um encanto a mais”
- “# Visão de aquarela”
- “# Jogo feito, # banca forte”
- “É # cheiro de mato”
- “É # terra molhada”
A preposição, elemento coesivo mais usado em sambas-enredo é recorrente neste samba. As preposições presentes nos termos preposicionados têm função descritiva desse termo:
- “Visão de aquarela”
- “Portela é canto no ar”
- “Deu Águia, símbolo da sorte”
- “É cheiro de mato”
- “Neste enredo sem igual”
- “Em tempo de carnaval”
Da pontuação constante na letra do samba, a vírgula desempenha função primordial de marcar a cadência da frase, dando uma pausa para marcar o ritmo e a entoação das palavras no verso:
- “Oke-oke, Oxosse”
- “Oke-oke, Natal”
- “Jogo feito, banca forte”
- “Deu Águia, símbolo da sorte”
- “Epa-hei, Iansã, Epa-hei”
Bibliografia:
- “Dicionário do Folclore Brasileiro” – Luís da Câmara Cascudo
- “Para Tudo Não Se Acabar Na Quarta-Feira – A Linguagem do Samba-Enredo” – Julio Cesar Farias
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