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A mulher estava grávida de nove meses e, pelas
projeções, era quase certo que o bebê nascesse durante o Carnaval.
Seus outros dois filhos tinham nascido muito rápido, e sabendo que o
trabalho de parto dela era quase relâmpago, o obstetra não quis
deixar de alertar a paciente: nessa época do ano, o direito de ir e
vir no trânsito do Rio de Janeiro é relativo. Blocos, bandas,
desfiles, ruas interditadas ou meia dúzia de foliões mais calibrados –
qualquer esquina pode ser o fim da linha. Parecia um pouco
primitivo, mas o médico sentiu-se no dever de lhe dar instruções
gerais sobre o que fazer se a criança viesse à luz num desses
congestionamentos de alegria. A gestante preferiu antecipar um pouco
sua internação.
Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu, ou quem ainda não
nasceu e não quer nascer no meio da rua. Dizem os estudiosos que esse
estado de caos consentido é saudável, serve como um amaciante sobre a
rigidez da ordem social. Ao poder sentir-se dono da rua, o pedestre
se liberta simbolicamente da opressão imposta pelos veículos
motorizados no resto do ano. Na antropologia carnavalesca, os fins
justificam os meios. Mas o brasileiro e, principalmente, o carioca
que conseguir driblar as armadilhas urbanas de Momo, dificilmente
escapará ao cerco ideológico da folia.
TV, jornais, salões de cabeleireiro, escritório, praia, elevador,
internet, casa da sogra. De toda e qualquer direção transbordarão as
questões cruciais dessa época: a Mangueira terá estado linda, num
desfile de garra e samba no pé, mas a Imperatriz Leopoldinense,
apesar de não emocionar, é a que terá sido perfeita – o que
desencadeará um debate filosófico sobre os critérios de julgamento da
performance das escolas de samba. A polêmica começará e terminará
mais ou menos no mesmo ponto do ano passado (e do próximo ano).
Nada de Washington, Bagdá ou Brasília. A capital da notícia passa a
ser o Sambódromo, de onde serão irradiados para todo Brasil, verso a
verso, os indefectíveis sambas-enredo – instituição sem par na
cultura nacional. O rei visita a princesa nagô e saúda as Cataratas
do Iguaçu, o esplendor da ilusão (ou a ilusão do esplendor) contagia
o feitiço da avenida, e a índia seduziu o navegador sob a bênção do
orixá, ioiô, iaiá. O maior espetáculo da Terra levará a milhões de
lares cada um desses mantras repetido cerca de cinqüenta vezes, com
legenda e em seqüência ininterrupta, e ninguém deve se sentir culpado
se no final das contas tiver a impressão de que a índia nagô
contagiou o navegador nas Cataratas do Iguaçu.
A tarde da Quarta-feira de Cinzas talvez seja a síntese da vigília
monotemática instalada pelo Carnaval. Num Sambódromo de cara lavada,
promovido a fornalha no esplendor do encontro entre cimento e sol a
pino, a vida pára diante da apuração das notas do desfile na Marquês
de Sapucaí, quesito por quesito (assim como a Valéria Valenssa, é
nessa hora que a palavra quesito justifica sua existência). Da
empáfia dos dirigentes de escolas de samba à maquiagem das
repórteres, o calor parece tudo dissolver, menos a voz estourada e
monocórdia de Jorge Perlingeiro repetindo "dez, nota dez". É
um
ritual árido, que tem o estranho dom de manter uma população inteira
hipnotizada até o último instante. Só se for agora.
Em nenhuma outra época do ano é possível ouvir Lecy Brandão e Ivo
Meirelles explicando na TV por que o Império Serrano perderá pontos
em harmonia e a União da Ilha deverá ter nota dez em evolução,
descobrindo o sentido da vida em cada refrão de samba-enredo. Quando
a Portela passar, será a hora de enfileirar adjetivos aristocráticos
para Paulinho da Viola ("é um lorde", "um príncipe",
"um sacerdote"
etc) e comentar que o tempo não passa para Luíza Brunet. Ainda na
Portela, encaixa-se um breve comentário sobre o novo amor de Adriane
Galisteu e, se não for forçar muito a barra, uma referenciazinha a
Ayrton Senna. De vez em quando um locutor paulista suando em bicas
pode confundir Sapucaí com Anhembi, mas o que vale é a emoção. E lá
vem aquela ex-participante do Big Brother somando sua notoriedade à
daquele novo cantor de pagode...
Para as frutas que só dão no Carnaval (dão no sentido de brotar), de
Viviane Araújo a Luma de Oliveira, providencia-se sempre às vésperas
da folia alguma fofoca ou polêmica nova, que permita legendas e
comentários ligeiramente diferentes dos do ano anterior. Em 2002,
Luma criou um caso com os fotógrafos, disse que estava sendo
desrespeitosamente exposta por eles (logo ela, tão discreta) e gerou
um suspense sobre um possível embargo à sua imagem.
Tudo acabou bem, exatamente como neste ano, em que foi servida ao
público uma novelinha sobre uma crise diplomática entre a modelo e
sua escola, num script tipo EUA x ONU. Enquanto na Bahia Ivete
Sangalo e Daniela Mercury brigam para ver quem tem o vibrato mais
aeróbico, o kit-fofoca de Viviane Araújo também aparece devidamente
reciclado, com o entra-e-sai da prisão de seu namorado Belo,
condenado por conluio com traficantes.
Mas é Carnaval, e ninguém vai ficar recriminando pagodeiros ou
jogadores de futebol em dívida com a lei. Inclusive porque lei, nessa
época, torna-se algo muito relativo no Brasil – como ficou
demonstrado quando o governador Moreira Franco recebeu os bicheiros
do Rio, manda-chuvas das escolas de samba, no Palácio Guanabara. Como
querem os antropólogos, é a hora de simular a derrubada da pirâmide
social, de transformar a geléia geral em Carta Magna.
Mas se o freguês achar que tudo não passa de um porre generalizado,
excessivo e espasmódico, cheio das impertinências de uma euforia com
quatro dias de liberdade e um ano de cativeiro, pode quem sabe propor
ao prefeito o parcelamento do Carnaval em três vezes. Ou, para evitar
intermediários, levar a idéia direto ao gabinete do Carlinhos de
Jesus.
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