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O
melhor paliativo para uma semana que começou com ataques do tráfico e
termina com carnaval custa R$19,90 e pode ser encontrado em qualquer banca
de jornal. Trata-se da versão em DVD, magnificamente restaurada, de “Orfeu
Negro”, adaptação cinematográfica do “Orfeu da Conceição” de Vinicius
de Moraes lançada em 1958 pelo diretor francês Marcel Camus. Em suas cenas,
o Rio de Janeiro das favelas e do samba é idílico e, sim, muito distante
da realidade, tanto de ontem quanto de hoje. Mas subsiste nelas o que
de melhor oferece esta cidade de amores e ódios. É escapismo barato, sim,
no melhor sentido dos dois termos, um prato cheio tanto para os que gostam
de simplificar a realidade de violência e carnaval com sociologia barata
e para quem entende que esta realidade não é para principiantes.
Só
por ter unido Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim, prefaciando a
bossa nova e a melhor música em qualquer gênero produzida em muitos anos,
esta adaptação do mito grego de Orfeu já teria valido a pena. Como se
sabe, a peça estreou no Teatro Municipal em 1956, meses depois que Lucio
Rangel apresentou os dois nas mesas do Vilariño, a uísqueria-armazém que
continua lá, firme, na esquina das Avenidas Presidente Wilson e Calógeras,
no Centro do Rio de Janeiro.
O
resto não só é História, como das boas. A parceria rendeu imediatamente
maravilhas como “Se todos fossem iguais a você”, “A felicidade” e “Valsa
de Eurídice”. Para o filme, Luiz Bonfá, que também havia composto parte
da trilha da peça, ainda uniu-se a Antonio Maria e compôs simplesmente
“Manhã de carnaval”, assinatura da música brasileira em todo o mundo,
e o “Samba de Orfeu”. Diz a lenda - e, na dúvida, publique-se ela – que
depois de ouvir o projeto de Vinicius, àquela altura diplomata e poeta
conceituado, o jovem músico que vivia em Ipanema teria perguntado: “Tem
um dinheirinho nisso?”
É
esta ingenuidade, no melhor sentido da palavra, que transpira nos primeiros
dez minutos de filme, que por si só compensam o inevitável olhar idílico
de um francês sobre o romance de uma favelada vivida pela americana Marpessa
Dawn, a Eurídice encontrada para o Orfeu encarnado por Breno Melo, ator
principiante escalado para o papel principal. Nestas seqüências, morro
e asfalto se contrastam de forma esquemática na caminhada de Eurídice
entre a favela em que vive (sempre com batucadas ao fundo e crianças bem
nutridas correndo, jogando bola e soltando pipa ) e a cidade onde Orfeu
é motorneiro de bonde – com direito a uma viagem na barca da Cantareira
no meio.
Nestas
imagens, em que aparecem detalhes da Enseada de Botafogo, Avenida Rio
Branco, Palácio Capanema e Cinelândia o Rio parece de ontem parece comunicar-se
estranhamente com seu presente - e não só porque, na caminhada de Eurídice
ao lado do antigo Ministério da Educação, a cidade esteja arquitetonicame
nte bem preservada. Há nelas uma mistura de temor e leveza – da repulsa
e sedução que a balbúrdia carnavalesca exerce sobre Eurídice – que se
aproxima, na essência, da experiência que é hoje o carioca forçado ao
diminutivo moral e gramatical dos Silveirinhas, Garotinhos, Rosinhas e
Fernandinhos.
É
uma sensação que não se pode ter trancado no escritório ou entupindo-se
de notícias sobre a cidade, seus números assustadores. É preciso, mesmo
com ônibus ardendo e sirenes disparadas ao fundo, andar na rua, sentar
numa mesa do Vilariño e, sob os cuidados do Ramos, olhar em volta com
calma, das fotos de época espalhas pelas paredes aos pequenos dramas e
conversas acaloradas que estão vivos nas mesinhas de tampos de mármore.
Não é que o Rio tenha parado no tempo ou que a decadência seja abstraída.
Ao contrário. Ali, como em poucos outros lugares, a cidade avança no tempo,
está viva dentro dele no confronto entre a tradição, sólida, e um presente
precário e sujo.
Por
isso, antes de desprezar o carnaval por seu gigantismo, pelo jogo espetaculoso
dos carnavalescos e patronos de ego maior que seus carros alegóricos,
dê uma passada na Casa Turuna, loja plantada na confusão do comércio popular
Saara que há 86 anos abastece a cidade de piratas, palhaços, beduínos,
diabos, gorilas e tudo o mais que a imaginação permitir. Uma olhada nas
vitrines, onde as fantasias são expostas o ano inteiro praticamente, e
uma caminhada pela loja, onde máscaras e adereços ficam pendurados nos
tetos e paredes, e você está de volta às imagens de Marcel Camus, que
sem entender bem o Brasil acabou interpretando bem as particularidades
de uma cidade.
A
experiência espaço-temporal sugerida por “Orfeu Negro” pode ser ainda
radicalizada neste sábado. A partir das 9 da manhã, centenas de clóvis
(versão cariocas dos clowns), índios e odaliscas reúnem-se, como
há 84 anos, no desfile do Cordão do Bola Preta, ainda hoje um dos melhores
momentos do carnaval de rua. Ano passado, calculava-se mais de 20 mil
pessoas pulando pelo Centro da cidade ao som das marchinhas de outros
tempos – exatamente como nas imagens do francês. E, nos próximos dias,
ainda há carnaval não-oficial sob os Arcos da Lapa, nos arredores do Sambódromo,
nas praias da cidade.
O
Hades carnavalizado de “Orfeu Negro”, que tanto parecia se opor ao realismo
depois buscado pelo Cinema Novo, chega a 2003 com o perturbador status
de documentário. Estão ali, no idílio e na ingenuidade, fragmentos brutalistas
da delicadeza que sobrevive como no apelo de Chico Buarque em “Estação
derradeira”, uma das melhores crônicas do Rio de Janeiro: “São Sebastião
crivado/Nublai minha visão”. Amém.
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