Da arquibancada, quase toda escola é campeã

              Muita coisa se pode dizer do público que assistiu ao segundo e último dia de desfiles das escolas do Grupo Especial, ontem, nas arquibancadas do Setor 11 do Sambódromo. Só não se pode usar o clichê da frieza: paulistas, mineiros, franceses e até alguns cariocas passaram a noite querendo (e eventualmente conseguindo) gostar do que viam e inventando maneiras de participar. No fim das contas, valeu a popularidade de escolas como a Mangueira, a Beija-Flor e a Mocidade Independente de Padre Miguel.
            Antes das 19h a arquibancada já estava bem cheia, com as pessoas instaladas entre mochilas e garrafas térmicas. Depois que a maior parte do público se ajeitou, começaram algumas brincadeiras com o pessoal da arquibancada em frente, do setor 4, e uma sessão de marchinhas como “Mamãe eu quero” e “Maria Sapatão”. O divertimento sadio foi interrompido pelo temporal que caiu na cidade. Os sambistas correram para seus guarda-chuvas e capas de plástico (vendidas a R$ 10) e conseguiram proteger-se a tempo de ver a Tradição, que abria a noite. A azul-e-branco de Campinho teve boa resposta do público, mesmo porque era a primeira a desfilar, depois de todo o périplo. As pessoas ainda tentaram pular mais, mas o visual pobre da escola impediu manifestações mais efusivas. O entusiasmo ficou por conta das bandeirinhas verde-e-rosa que eram estrategicamente distribuídas.
            A Mangueira foi tudo o que os torcedores pediram: grandiosa, com luxo, satisfez plenamente o afã dos presentes, que cantaram o samba com vontade e aplaudiram desde a comissão de frente – onde era impossível se perceber as prometidas sete pragas do Egito – até a ala que mostrava Moisés atravessando o Mar Vermelho. Foi o primeiro grito de “É campeã!” da noite, e possivelmente o mais forte. Em seguida veio a Beija-Flor, que também contou com uma boa recepção. A sucessão de monstros da escola de Nilópolis agradou o público – embora menos do que o luxo da Mangueira – que também cantou alto o samba, junto com Neguinho da Beija-Flor. O casal de mestre-sala e porta-bandeira Selminha Sorriso e Claudinho também foi muito aplaudido. A Beija-Flor só não conseguiu a ovação que esperava com a parte política de seu desfile: o grupo de sem-terras que vinha ao fim (praticamente idêntico ao da Unidos de Vila Isabel, que no sábado havia homenageado o arquiteto Oscar Niemeyer) foi praticamente ignorado, e o boneco do presidente Lula ainda bateu com a mão na torre dos fotógrafos e perdeu mais um dedo, além do mínimo da mão esquerda.
            Para uma escola média, de pouco apelo como a Unidos da Tijuca, foi uma tarefa difícil desfilar após as gigantes Mangueira e Beija-Flor; pior ainda para quem tinha um samba, apesar de belo, repleto de palavras em idiomas africanos. Ainda assim, a escola do Borel foi aos poucos cumprindo bem o seu papel: quando o carro de som com o puxador Nêgo (irmão de Neguinho da Beija-Flor, que tinha acabado de desfilar) e a bateria de mestre Celinho chegaram ao recuo, o público já batia palmas ritmadas e admirava as alegorias do carnavalesco Milton Cunha. Ainda assim, foi uma das poucas da noite a não ouvir o coro de “É campeã!”. Seguiu-se a Unidos do Porto da Pedra, que se aproveitou bem de sua posição e foi mais aclamada do que a Tijuca. Com a letra do samba na mão, o povo do setor 11 cantava o refrão do meio, “Quem vai, quem vai, quem vai querer...” junto com o puxador Preto Jóia. Ficou fácil confirmar que, se a segunda-feira é o dia preferido para quem quer ser campeão, para quem está em busca de afirmação ela pode ser um grande desafio.
            A maior surpresa da noite e a maior reação do público vieram no desfile seguinte: puxado por um grupo de gaiatos, que encenava uma coreografia bem-humorada em um dos refrãos da Mocidade, o samba-enredo com jeito de hino gospel da escola da Zona Oeste foi crescendo na boca do público, até estar mais forte do que o da Mangueira, antes mesmo de a escola chegar ao setor. Os erros da bateria no recuo não enfraqueceram o coral, que ficou forte até o fim do desfile. Resultado: “É campeã!” mais uma vez.
            Ao contrário do que havia acontecido na véspera, nas frisas do setor 3, pouca gente foi embora ao longo da noite, certamente menos de 10% do público presente à arquibancada do setor 11. Na Praça da Apoteose, por exemplo, os espaços entre as pessoas eram visíveis. O setor 6 nunca chegou a ficar lotado. Com o sol nascendo, aconteceu no início do desfile da Imperatriz um efeito semelhante ao que havia ocorrido com a passagem da Portela, a última a desfilar no domingo: as pessoas ficaram imbuídas de um entusiasmo (no melhor clima de é-hoje-só-amanhã-não-tem-mais) que deslanchou o marcheado samba-enredo da escola de Ramos. Os piratas da carnavalesca Rosa Magalhães, que pulavam feito pipoca na avenida, não detonaram no público a mesma reação de algumas das escolas anteriores, mas ganharam muitos aplausos. Exatamente como acontece sempre que a Imperatriz é campeã.
 

Bernardo Araújo
Publicada no Jornal O Globo em 05 de março de 2003

(É jornalista do Jornal O Globo e crítico musical)

 

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