O negro na história do Carnaval de São Paulo

 

          O Carnaval é uma festa popular que vem através dos séculos, envolvendo quase todos os países do mundo. Seu objetivo é proporcionar ao ser humano liberdade, descontração, prazer e alegria, levando em conta que o período carnavalesco é um tempo muito curto, ansiosamente esperado durante o ano.
          Com a chegada dos negros escravos vindos de diversas regiões da África,  o Brasil recebeu, além da mão-de-obra valiosa e dos ritos e costumes,   sua dança e o batuque.
          A história nos ensina, no decurso dos séculos, que um povo, para sobreviver, tem que defender suas raízes e conservar suas tradições, o que inegavelmente é uma grande verdade.
          As raízes culturais vindas da África fincaram-se neste solo abençoado, permanecendo aqui até hoje. As tradições trazidas por esse povo foram sendo espalhadas por todo o território brasileiro, unindo os homens e fazendo crescer não só o batuque, espinha dorsal da cultura sambística, como também os costumes e experiências, transmitidas com muita força de vontade de geração em geração.
          Em São Paulo, quando os navios negreiros aportavam em São Vicente, os negros eram desmembrados de suas famílias ou conterrâneos e levados para os mais diversos lugares do interior. Nas senzalas, quando permitidos pelos seus senhores, formavam o batuque, com auxílio do tambu, instrumento feito de tronco de árvore ocado, tendo em uma das extremidades um couro bem esticado de animal, para dar o som.
          Por ocasião das festas religiosas de seus senhores, as danças eram permitidas nos terreiros das casas grandes, sendo, aos poucos, transferidas para as festas religiosas da Igreja Católica. A forma encontrada pelos negros para cultuar suas crenças foi transferir o nome de seus Orixás para os Santos da Igreja Católica.
          Nas procissões os senhores levavam suas escravas domésticas vestidas com saias engomadas e turbantes, que faziam um belo visual, e as colocavam no começo das procissões como um chamariz. À sua frente vinha o som de instrumento de percussão feito de bambu, acompanhado por um grupo de negros vestidos com trajes indígenas; eram os Caiapós, o primeiro cordão de que se tem notícia em São Paulo.
          No retorno das procissões, não era permitida a entrada na igreja tanto das negras e negros com dos instrumentos, permanecendo nos adros dela onde era permitido o batuque. Com o passar dos anos essas manifestações foram definitivamente proibidas.
          Em alguns bairros os negros faziam o batuque nas festas religiosas ou em seus terreiros, como na Liberdade na festa de Santa Cruz; na Bela Vista na festa de Nossa Senhora Chiropita; no terreiro do Zé Soldado na Saúde; no reduto negro da Barra Funda. Em todos esses batuques havia não só a participação de negros, como também de brancos e mulatos, geralmente de classes sociais mais humildes.
          O fortalecimento do batuque, posteriormente do samba paulista, se deu na cidade de Pirapora do Bom Jesus, onde muitos anos antes da libertação dos escravos, eram feitas romarias em louvor ao Santo.
          Por haver uma participação muito grande de romeiros vindos de diversas cidades do interior e da capital, foram construídos barracões para abrigarem os romeiros. Neles, depois de homenagear o Santo, a comunidade negra se reunia para realizar o batuque. Essa era também uma forma dos negros de São Paulo trocarem informações com os de diversas cidades do interior do Estado. Nessas festas muitas famílias, separadas na sua chegada ao Brasil, se reencontravam.
          Os grandes sambistas da capital e suas famílias participavam dessas romarias, e muitos eram batizados não na igreja mas sim nos próprios barracões, ao som do batuque.
          Todas as informações colhidas em Pirapora fortaleceram dados sobre o samba paulista, um samba considerado mais pesado do que o do Rio de Janeiro, isto é, com um ritmo mais forte, porque teve raízes no batuque.
          Uma forma encontrada pelos negros para participarem no carnaval dos brancos foi a apresentação do grupo Caiapós, durante o carnaval. Aos poucos vão aparecendo novos cordões e blocos, criando-se então as “Pequenas Sociedades”, que organizaram, com o auxilio do jornal Correio Paulistano, o “Dia dos Cordões dos Negros”.
          Por volta de 1934, surgiu a primeira Escola de Samba, denominada “Escola de Samba 1ª de São Paulo”, fundada por Eupídio Faria, um negro muito respeitado e dinâmico. Foi detentora de muitos prêmios, enquanto existiu, pois só se têm notícia de suas apresentações até 1942. Durante a II Guerra Mundial todos os eventos carnavalescos foram suspensos, tanto das Grandes Sociedades que eram dirigidos pelos  clubes da elite paulistana como das Pequenas Sociedades que abrangia as Escolas de Samba, Blocos e Cordões.
          Na década de 30, existia um cordão chamado “Baianas Teimosas”, que em 1937 se transformou em Escola de Samba Lavapés, fundada por Eunice Madre e Chico Pinga seu marido. Essa é a mais antiga Escola de Samba de São Paulo, pois, não só perdurou durante a guerra, fazendo seus ensaios na casa da “Madrinha Eunice”, como está em plena atividade até hoje. 
          Muitas outras Escolas de Samba comandadas por negros foram criadas em São Paulo, porém poucas conseguiram manter esse comando.
          Quando as Pequenas Sociedades começaram a se apresentar durante o carnaval pós guerra, eram elas perseguidas pela polícia. A maneira encontrada  por elas para poderem se apresentar foi organizar uma Comissão de Frente com pessoas brancas da sociedade do seu bairro, respeitadas pelas autoridades, como advogados, escreventes de cartórios, dentistas, comerciantes etc.
          Torna-se marcante daí para a frente a presença de brancos nas Escolas de Samba, chegando ao ponto de os negros, antes dirigentes e desfilantes, se tornarem em sua maioria meros espectadores. Com efeito, com o ingresso maciço dos meios de comunicação, exaltando principalmente figuras políticas e artísticas, e o elevado custo das fantasias, os participantes negros das escolas, que marcam nelas sua presença o ano todo, principalmente durante os ensaios, infelizmente, na sua maioria, não têm condições financeiras para desfilar na avenida.
          Essa inversão de valores é constrangedora, pois, apesar das Escolas de Samba se tornarem o maior espetáculo da terra, os antigos divulgadores do samba hoje perderam seu prestigio. Hoje é comum encontrarmos dirigentes de Escolas de Samba na maioria brancos, com grande poder aquisitivo e político, mas que das raízes e da cultura negra nada sabem, ou querem saber.
          Hoje os espectadores dos desfiles na passarela pertencem a uma sociedade de poder aquisitivo mais elevado. Porque, para se manter em evidência durante o carnaval, o samba escancarou suas portas, deixando-se invadir pela mídia, pelo consumismo, esquecendo que o espetáculo é ele que faz, com suor e dedicação, e se o samba não houvesse tido toda essa trajetória vinda dos nossos antepassados negros, jamais teria conseguido o seu lugar de destaque.

Maria Apparecida Urbano
 Autora do livro: Carnaval & Samba em Evolução – Na Cidade de São Paulo
(Publicado originalmente na Revista Afirmativa Plural, Ano 4, nº 17- AFROBRAS/UNIPALMARES –São Paulo)

 

Artigos