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Toco, antes de despedir-se da vida, deixou à escola sua derradeira obra. Ele não é somente o maior vencedor de sambas-enredo: sua vida confunde-se com a história da Mocidade
Toda escola de samba de ponta traz na bagagem fundamentos característicos, ainda que possam sofrer transformações com o tempo: uma batida diferenciada e identificável, um direcionamento estético, um estilo próprio de construção de seus sambas-enredo. E sabe, com clareza, identificar aqueles que ajudaram a delinear o seu jeito de ser, a simbologia que o inconsciente coletivo tomará por marca, o auto-reconhecimento na hora do estourar dos fogos na pista dos desfiles. Um homem com pinta de garoto, sorriso fácil, corpo franzino, foi dos maiores responsáveis pela forma com que a Mocidade Independente se descobriu e cantou os seus carnavais, desde os primeiros anos de fundação.
Antonio Correia do Espírito Santo, mais conhecido como Toco, ganhou 12 disputas de samba na Verde-Branco. A escola faturou seis campeonatos, sendo cinco no Grupo Especial; em quatro - incluindo o título que em 58 carimbou o passaporte para o grupo das grandes escolas - havia o nome de Toco entre os autores do samba. Mas, muito além de embalar apresentações vitoriosas, a obra do chamado “poeta maior”, falecido no último mês de novembro, ajudou a construir a própria história da Mocidade Independente.
“Quando estávamos compondo “A vida que pedi a Deus” (2006), ele me disse que conhecia o estilo da escola. Na mesma hora, retruquei: você não conhece o estilo da Mocidade, você é o próprio estilo”, revela Marquinho Marino, parceiro de Toco e Rafael Só, que faleceu recentemente, nas duas últimas composições vitoriosas em Padre Miguel. O intérprete Roger Linhares, filho do compositor, conta que a poesia do seu pai foi primordial para que decidisse virar sambista: “Eu fui muito influenciado pela música dele, desde pequeno. Ficava cantarolando as suas obras, cresci envolvido por aqueles acordes fantásticos. Cheguei, inclusive, em 1982, a participar de um festival no colégio onde estudava, o Presidente Kennedy, tendo ficado em segundo lugar ”, rememora Roger.
Uma ala vitoriosa
A ala de compositores da Mocidade, conhecida por ter concebido poesias fantásticas para o samba carioca, acabou sendo muito marcada pelo seu jeito de compor. Dois nomes vitoriosos da escola, Tiãozinho da Mocidade e Jefinho, encontraram, em 1976, um momento-chave para a trajetória de sucesso que trilharam na agremiação. Não é de espantar que, naquele ano, a Verde-Branco tivesse desfilado com uma das composições mais conhecidas de Toco, “Mãe Menininha do Gatois”.
Tiãozinho tornou-se compositor da escola justamente naquele carnaval. Jefinho, presidente da ala de compositores desde 2000, autor de obras consagradas como “Criador e criatura” (1996) e “O grande circo místico” (2002), teve sua entrada na Mocidade batizada pelo samba que, entre outros versos, dizia “já raiou o dia, a passarela vai sei se transformar...”. “Cheguei à Mocidade no ano em que Toco tinha criado aquela ode maravilhosa a uma das maiores personagens da Bahia. Tornei-me ritmista da escola, vindo da Unidos de Padre Miguel. Na ala de compositores, ingressei em 1986. No ano anterior, faturara um samba em nossa co-irmã de bairro. Fui recebido aqui de braços abertos, aprendendo, no contato com tantos mestres, as melhores lições”, diz Jefinho.
Dico da Viola, outro baluarte campeoníssimo nas disputas de samba em Padre Miguel, tendo assinado hinos como “O velho Chico” (1982) e o já citado “O grande circo místico” (2002), também se ligou profissionalmente à escola na década de 1970. “A Mocidade é a agremiação do meu coração, do povo da Vintém. Uma autêntica família. Já tive convites para compor em outros lugares, mas daqui eu não saio”, diz o compositor.
Em sua opinião, Toco deixa na Coronel Tamarindo um legado inestimável para as novas gerações: “O samba de minha autoria de que mais gosto é “Elis, um trem chamado emoção”, de 1989. Nele, há um verso que diz: “Amigo é pra se guardar dentro do peito / Do lado esquerdo, no coração”. A Mocidade vai manter este nosso grande compositor eternizado no lado esquerdo do peito”, afirma.
Tiãozinho, parceiro de Toco nos vitoriosos “Vira, virou, a Mocidade chegou” (1990) e “Chuê, chuá, as águas vão rolar” (1991), relembra uma história curiosa: “No ano de 1979, primeiro campeonato da Mocidade, nosso “poeta maior” e seu amigo Djalma Crill, haviam decidido não fazer samba. Faltando poucas horas para o fechamento das inscrições, resolveram pensar na obra. Pegaram uma fita e eu fui anotando para eles, em letra de fôrma, o que brotava daquelas mentes iluminadas. Em poucos instantes, estava ali o hino que seria aclamado na Quarta-Feira de Cinzas”, conta.
Sobre a composição dos sambas que dariam à Mocidade o bi-campeonato, no início da década de 1990, Tiãozinho afirma que ele, Toco e Jorginho Medeiros - que também estava na parceria – formavam um trio que, literalmente, “funcionava por música”. O refrão central de “Vira, virou, a Mocidade chegou”, imortalizado por trazer os pilares comunitários da Mocidade Independente (Padre Miguel e Vila Vintém), por exemplo, foi todo trabalhado em conjunto, tornando-se a estrofe mais bem-sucedida daquele carnaval.
“Amar, viver, sonhar, acreditar...”
Internado durante o processo de composição do samba “O futuro no pretérito – uma história feita a mão”, que a Mocidade levará para a avenida em 2007, Toco continuou produzindo a todo vapor. Conta Marquinho Marino que o poeta chegou a brigar com uma de suas médicas: “A senhora me deixe livre para fazer a minha arte, e eu não a atrapalharei na arte de me curar”. Pleiteava ele, naquela oportunidade, que o seu parceiro tivesse mais liberdade para visitá-lo, já que somente assim poderiam trocar impressões sobre os versos compostos. A doutora, claro, cedeu aos apelos.
No mesmo período, Rafael Só, outro compositor da parceria, também teve de se internar, o que fez Marquinho Marino desdobrar-se em visitas diárias a dois hospitais: “A relação de Tôco e Rafael, muito além de parceiros em dois sambas vitoriosos na Mocidade, assim como em outros, era algo indescritível. Coisa de irmãos mesmo. O mestre sempre dizia: “Não abro mão do Rafael!”, ou seja, tinha total admiração pelo trabalho do amigo, que, sem dúvida, foi dos maiores letristas que já conheci”, diz Marquinho.
Rafael Só faleceu no início deste mês de fevereiro. Poucos dias antes de morrer, ele concedeu um depoimento emocionado sobre o amigo Toco: “Era um ser humano e profissional acima de qualquer palavra e qualificação. O que dizer sobre uma obra-prima como “Rapsódia de Saudades”, por exemplo? Começamos a compor juntos em 1986. Eu já havia perdido, em 1979, na final, para ele e Djalma (Crill). Depois de nos juntarmos, entre idas e vindas na parceria, criamos uma história de amizade e cumplicidade que nunca esquecerei”, contou.
Segundo Marquinho, um dos refrões do samba de 2007, que traz quatro verbos no infinitivo, é a síntese do espírito com que a obra foi composta, dadas as circunstâncias adversas que cercaram o trio na última disputa. Toco ainda conseguiu ir à quadra assistir à sua última vitória, mas acabou morrendo menos de um mês depois.
Sua obra deixa no ar as tais “saudades coloridas”, e está imortalizada nos corações daqueles que apreciam o mais brasileiro dos ritmos. E é ela quem nos conta boa parte da história e da essência do G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel, desde o canto das “noites enluaradas” nas terras do Coronel Trigueiro até as maiores inspirações que fizeram e fazem nascer a poesia. A velhice veio chegando, mas o mestre, lá de cima, continua cantando.
“Teus versos são laços de amor em harmonia Se vestem da mais doce melodia É a minha Mocidade a cantar
E hoje eu canto Faço do samba minha prece O nosso mundo se enternece Louvando Toco, o campeão dos carnavais”
Trecho de “O poeta maior”, de autoria de Rafael Só.
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