Autores, ao virarem enredos, fazem do carnaval um alegre aprendizado

 

          O escritor Coelho Neto era um entusiasmado adepto dos ranchos carnavalescos que marcaram a folia carioca no início do século 20. Torcedor do Ameno Resedá, o literato defendeu em mais de um artigo o papel dos ranchos como instrumentos de divulgação, por meio de seus enredos, de episódios da história do Brasil, feitos de seus heróis e poesia de suas lendas. Os ranchos seriam instrumentos de certa pedagogia popular, capazes de educar no amor aos valores da pátria uma população sem acesso à educação formal.
          Esse papel que Coelho Neto atribuía aos ranchos acabou sendo desempenhado pelas escolas de samba, agremiações que se afirmaram como principais representantes do carnaval carioca a partir da década de 1940. Desde então, e por força de regulamentos que visavam disciplinar os desfiles, as escolas eram obrigadas a apresentar em seus cortejos temas com motivos nacionalistas. Nessa perspectiva, as escolas de samba começaram a adotar enredos que, em geral, versavam sobre episódios e heróis da história brasileira e a exuberante natureza do país.
          Outra vertente desse nacionalismo se transformou em um prato cheio para as agremiações se apresentarem no carnaval – a literatura brasileira, incluindo aí escritores e suas obras. Os exemplos são numerosos e mostram como o carnaval carioca – predominantemente popular e marcado pela perspectiva da oralidade – enxergou e transformou a manifestação por excelência da cultura escrita, a literatura, em matéria de samba.
          Do indianismo de Gonçalves Dias (enredo da Mangueira em 1952, com belíssimo samba de Cícero e Pelado), ao modernismo de Ascêncio Ferreira (Oropa, França e Bahia foi o tema da Imperatriz Leopoldinense em 1970), é possível passear pela história das letras no Brasil ao som do cavaco e do pandeiro.
          É curioso saber, por exemplo, que viraram sambas obras como Invenção de Orfeu (o para muitos impenetrável poema de Jorge de Lima resultou no belo samba de Paulo Brasão, baluarte da Unidos de Vila Isabel, em 1976); Os sertões (Edeor de Paula, da Em Cima da Hora, sintetizou em poucos versos o calhamaço de 500 páginas de Euclides da Cunha e fez um dos maiores sambas-enredo de todos os tempos); O Manuscrito holandês (a peleja entre o caboclo Mitavaí e o monstro Macobeba, de M. Cavalcanti Proença, embalou a Unidos da Tijuca em 1981); Memórias de um sargento de milícias (1966, único samba-enredo vitorioso de Paulinho da Viola para a Portela, que em dezenas de versos contava as peraltices de Leonardo Pataca nos tempos do rei); e Macunaíma (obra-prima de David Correia e Norival Reis, que o escritor Alberto Mussa considera melhor que o livro de Mário de Andrade, com um refrão – Vou-me embora/ vou-me embora/ eu aqui volto mais não/ vou morar no infinito/ e virar constelação – que embalou as tardes de futebol do Maracanã em 1975).
          Quero, porém, me ater rapidamente a um caso exemplar, que mostra como o carnaval é uma excelente oportunidade para se falar de literatura de forma original e atraente, sobretudo para estudantes do ensino médio, que em geral se aproximam das obras literárias com uma espécie de horror absoluto. O samba-enredo pode ser, como acontece frequentemente com a história do Brasil, uma porta de entrada afetuosa para o estudo mais sistemático e aprofundado dos livros e autores.
          Em 1989, o Império Serrano, que em seu primeiro carnaval, o de 1948, homenageou Castro Alves, apresentou o enredo Jorge Amado, axé Brasil. O samba, de autoria de Beto Sem Braço, Aluísio Machado, Bicalho e Arlindo Cruz, descreve uma grande festa ocorrida na Tenda dos Milagres, em que os personagens do baiano se encontram para um furdunço dos bons. Não imagino uma aula sobre Jorge Amado que introduza melhor o aluno adolescente ao universo do autor que esse samba da agremiação da Serrinha.
          Protegendo o portão da tenda, está ninguém menos que o pai-de-santo Jubiabá (“Jubiabá tá no portão/ e as iaôs jogam pitangas pelo chão”). Aos poucos começam a chegar, de todos os cantos da Bahia, os personagens de Amado, que logo se entrosam perfeitamente (“Com os pastores da noite / Vem gente lá das terras do sem fim ... Olha que papo maneiro / Entre os velhos marinheiros / E os novos capitães ... Vem gente que sofreu demais / Lá do sertão e da beira do cais”).
          No auge da festa, Teresa Batista dança samba de roda com Tieta e o cambaleante Quincas Berro D'Água, enquanto Gabriela e Dona Flor dividem as panelas, preparando o vatapá que vai alimentar aquela gente toda. O desfecho do samba é apoteótico. Jorge Amado é homenageado no refrão com a saudação que o povo do candomblé faz ao orixá Oxalá, considerado o pai maior pelos adeptos do culto: “Echeuêpa Babá/ Echeuêpa Babá/ Axé Brasil/ Pai Amado Saravá.”
          Comovido com a homenagem, não é todo dia que alguém vira orixá, o mestre baiano compareceu ao desfile, apresentando-se em um carro alegórico cercado de amigos e mães de santo e escoltado por Zélia Gattai, que desfilou com os trajes típicos da boa terra.
          Anos depois, o mesmo Império Serrano conseguiu levar Ariano Suassuna para a Marquês de Sapucaí – devidamente consagrado na Praça da Apoteose como o legítimo imperador da Pedra do Reino.
          Mesma sorte não teve a Mangueira, que em 1987 homenageou Carlos Drummond de Andrade, ganhou o carnaval, mas não conseguiu de forma alguma arrastar para a folia o poeta de Itabira – já adoentado e pouco afeito ao surdo sem resposta da Estação Primeira. A Vila Isabel, que em 1980 transformou o poema “Sonho de um sonho” em enredo, com belo samba de Martinho, já não havia conseguido tirar o mineiro da reclusão em Copacabana.
          Há, evidentemente, casos pitorescos. Em 1982 um repórter que cobria os desfiles para uma rádio perguntou a um diretor da Unidos da Tijuca se o escritor homenageado desfilaria na escola em algum carro alegórico. O enredo da agremiação tijucana era Lima Barreto, falecido (em 1922) quando Ismael Silva era só um adolescente do Estácio.
Este ano, a literatura brasileira estará presente no desfile do grupo especial. A Mocidade Independente de Padre Miguel juntará no mesmo enredo Machado de Assis – já homenageado pela Aprendizes da Boca do Mato em 1959, com um samba do então iniciante Martinho, que ainda não era da Vila – e Guimarães Rosa (o mote, atrasado, é o ano de 2008 – centenário da morte de Machado e do nascimento de Rosa). Sinhazinhas, barões do Império, bacharéis e demais personagens do Bruxo do Cosme Velho dividirão a passarela com os improváveis jagunços de Joca Ramiro e Zé Bebelo, sob a devida proteção de sua alteza Thatiana Pagung, a rainha de bateria da agremiação da Vila Vintém – que, quero crer, está mais para Capitu que para Diadorim.
          Aguardemos a quarta-feira de cinzas.

Luiz Antônio Simas
(Publicado originalmente no Jornal do Brasil – Caderno Idéias e Livros em 06 de fevereiro de 2009)

 

Artigos