“Sou independente, sou raiz também, sou Padre Miguel, sou Vila Vintém”

 

Guardiões da história da Mocidade, antigos componentes relembram seus laços com a escola. E provam que, mesmo profissional, o carnaval ainda é uma história de paixão e dedicação

          Uma escola de samba é construída e movida por sonhos. A realidade fantasiada por mentes delirantes termina por desembocar em cerca de 700 metros de avenida. Quiseram os deuses do carnaval que essa ilusão toda durasse apenas quatro dias, pelo menos no calendário. Mas a verdade é que a vida de uma agremiação constrói-se a partir de um trabalho realizado o ano inteiro. Vida que se confunde com a de muitas pessoas – do menino de pés descalços que bate bola e arrisca o primeiro dedilhar no cavaco à antiga baiana de sorrisos e quitutes fartos. Na Mocidade, escola nascida sob as bênçãos de uma amizade construída em campos de futebol, cuja força comunitária sempre foi marca registrada, não poderia ser diferente: muitos dos seus artistas moram nos arredores da Rua Coronel Tamarindo. E, claro, vivem o carnaval no dia-a-dia.
          Seu nome de batismo é “Mocidade do Independente de Padre Miguel”. A preposição “do” nos parece estranha atualmente, mas está registrada na ata da primeira reunião, em 10 de novembro de 1955. Segundo Hermano Pereira da Costa, o Mulato, da velha guarda, a idéia era mostrar que ali nascia a escola de samba dos amigos do “Independente Futebol Clube”, time de futebol nascido em 1952. Um claro indício, portanto, de que a Mocidade foi concebida já com a idéia de representação e agregação de um seguimento de pessoas, a gênese do que viria a ser a sua grande comunidade.
          Não demorou muito para os primeiros talentos espocarem pelas ruas da Vila Vintém e Padre Miguel. E para que fosse desenvolvida uma relação indissociável entre eles e a agremiação recém-criada. O crescimento foi conjunto. Elizete Cândida da Silva, a Tia Remba, primeira porta-estandarte e porta-bandeira, emociona-se ao lembrar de sua estréia: “Eu tinha 16 para 17 anos quando cheguei aqui. Falar de Mocidade é falar da minha própria vida. Largava panela no fogo, filho pequeno chorando, largava tudo pela escola. Meu amor por esta bandeira é eterno”, diz.
“E você se lembra quem foi o seu primeiro mestre-sala na Mocidade, Remba?”, pergunta o sorridente Orozimbo Oliveira, um dos fundadores e presidente da Mocidade entre os anos de 1962 e 1964. A resposta? “Mestre André! O homem comandava a maior das baterias e também entendia do riscado”, conta ele. A história da Mocidade tem em Orozimbo uma espécie de ícone. Ele é o pai do atual mestre de bateria da escola, Jonas, e do mestre de bateria da Imperatriz Leopoldinense, Jorjão, que também já comandou os ritmistas da escola de Padre Miguel.
          “No dia em que, pela primeira vez, conseguimos vender duas caixas de cerveja, foi festa na quadra. Hoje, entram carretas e mais carretas aqui, nossa escola é conhecida por todos. Mas maior que tudo isso são as amizades construídas, estas não têm preço”, afirma. Geraldo de Souza, o Prego, também fundador da escola, complementa: “Olhar para trás e ver que estamos deixando uma escola grandiosa para os mais moços é o meu maior orgulho”.
          Wandyr Trindade, o Macumba, atual vice-presidente executivo e presidente da velha guarda, é mais um nome de importância para a Verde-Branco de Padre Miguel. Outro remanescente do “Independente Futebol Clube”, em sua casa funcionou a primeira sede da Mocidade, ainda de forma improvisada. Seu tio, Sylvio Trindade, o Vivinho, foi o primeiro presidente da escola. “Acompanhei todo o processo de nascimento e crescimento da estrela-guia. Ela é a amante que a minha mulher consente, por quem também sou apaixonado”, diz.

Lições dos mais antigos

          Ex-porta-bandeira, Maria da Glória Pereira Gomes, a Glorinha do Siri, diz sem pensar duas vezes o primeiro lugar onde a Mocidade fazia os seus ensaios: “Era no terreno de minha avó, Dona Maria do Siri. No início, tudo acontecia na base do improviso mesmo. Ela cedia espaço e umas panelas para a comilança depois. É interessante notar que a Mocidade foi construída através de legados que foram sendo deixados: o filho que vinha por causa do pai, a filha que acompanhava a mãe... As famílias fortaleciam e fortalecem seus laços na Mocidade”, conta.
          A escola rumou para a elite do carnaval carioca após a folia de 1958, vencida, no grupo de baixo, com o enredo “Apoteose ao Samba”. Mas passou a estruturar-se como um grêmio de força no carnaval carioca somente a partir da década de 1970. Esse crescimento, entretanto, não atrapalhou a estreita relação desenvolvida entre a Verde-Branco e a sua comunidade. Nascido na “Barão com a Belizário”, que “não é lugar de otário”, como ele afirma e canta, Tiãozinho da Mocidade ingressou na ala de compositores em 1976. Assíduo freqüentador dos ensaios desde garoto, foi apresentado pelo compositor Osvaldo Pindorama, que o levou ao fundador da velha guarda da Mocidade, Tio Dengo (Ariodantino Vieira), também ex-presidente da escola.
          “Eu tive a felicidade de colar com a velha guarda. Na época, Tio Dengo disse que só me aceitaria entre os compositores se eu aprendesse algum samba mais antigo. Ele reclamava que ninguém mais queria cantar aquelas obras. Sempre presente aos ensaios, eu conhecia todas elas. Foi uma surpresa que o emocionou”, lembra. Co-autor de clássicos como “Vira, virou a Mocidade chegou” (1990) e “Chuê, chuá, as águas vão rolar” (1991), Tiãozinho hoje está diretamente ligado à velha guarda da Mocidade, comandando shows com os baluartes da agremiação.
          Essa via de mão dupla entre novatos e mais antigos é a mola mestra que proporciona à bem-sucedida renovação nos mais diversos setores da Mocidade Independente. Bibiana, uma das mais importantes baianas da escola, antiga integrante da extinta ala das Caprichosas, por exemplo, é filha da primeira baiana, já falecida, Francisca Ferreira dos Santos – a Tia Chica –, o que reforça a fala de Glorinha sobre a espécie de “passagem de bastão”, acontecida de tempo em tempo.

Sonhar e conquistar

          Tia Nilda, a atual presidente destas chamadas “mães do samba”, conta que para desfilar pela primeira vez, em 1979 (ano do primeiro campeonato da escola entre as grandes), teve de enfrentar temporal e enchente para conseguir a sua vaga: “Eu só pude me inscrever no último dia, mas a minha vontade de me associar àquelas senhoras era tanta, que encarei todas as situações adversas. No dia do desfile, recebi a fantasia às 11 da noite e tinha de estar à meia-noite na avenida. Fui toda vestida no trem. Meu chapéu, que era uma caravela, balançava pra lá e pra cá”, diz rindo.
          Ela hoje é uma das lideranças mais importantes da Mocidade Independente, tendo conquistado o amplo apoio de suas comandadas, como conta Bibiana: “Nós temos mais do que uma presidente. Temos uma amiga, uma mãe, que começou como uma simples componente da ala, e que hoje é a principal responsável pelo nosso sucesso na avenida. O prêmio Estandarte de Ouro, que ganhamos em 2006, não me deixa mentir”, afirma.
          Este exemplo de conquistas, sonhos alcançados, e satisfação pessoal são caracteres de fácil identificação em todos os que vivem e fazem a Mocidade. Marinalva Santos é síntese de tal quadro. Ex-passista, conseguiu reunir forças após o falecimento do marido, Ararê de Assis, em 2004, para continuar a fantasiar os sonhos de carnaval dos desfilantes da ala “Bons Amigos”.
          O grupo nasceu em 1974, por um convite feito a Ararê pelo atual vice-presidente administrativo, Benjamin da Silva Filho, o Didiu. Rebatizada como “Bons Amigos do Ararê”, a ala se mantém como um segmento de importância da Verde-Branco. “Tenho certeza de que a vontade do Ararê era a de ver o seu amor pelo carnaval continuar vivo. Fiz a minha parte”, afirma Marinalva.
          Já Evaldo Jr., compositor campeão da Estrelinha em 2003 e 2004, conseguiu realizar o sonho de, com apenas 16 anos, concorrer com uma obra na disputa de samba-enredo da Mocidade. Mais uma vez a comunidade da escola demonstrava o valor de  prestigiar as pratas da casa: “Foi muito emocionante e gratificante. Como compositor mirim, sempre tive vontade de subir este degrau. Aí, no concurso visando ao carnaval 2007, apareceu esta oportunidade e eu agarrei. Ter ficado entre os 10 já foi uma grande conquista”, conta.
          O fato é que a Mocidade de Mestre André, de Careca, de Ney Vianna, de Castor de Andrade, de Fernando Pinto, de Toco e tantos outros também só foi e é possível pelo trabalho, pela garra e pela dedicação daqueles que vestem a fantasia em cada desfile. A artista plástica capixaba Ligia Margotto todo ano desembarca em solo carioca para desfilar na Mocidade. “Apaixonei-me pela escola em 1990, ano de nosso terceiro campeonato. É indescritível esta relação por uma referência cultural que não é do nosso estado. Só sei que aprendi a amar a escola e através dela fiz muitos amigos foliões”, conta.
          Foliões estes de apenas um, ou de carnavais a perder de vista, que evoluem ao som do ziriguidum e dos acordes criados na vila das casas que não valiam um vintém –  como se dizia antigamente. A tal “Mocidade do Independente” perdeu a preposição de batismo, mas não jogou fora o elo com os ditos “independentes”, aqueles que continuam a escrever a mãos mil a sua vitoriosa história...

Fábio Fabato
(Publicado originalmente na Revista da Mocidade Independente de Padre Miguel – 2007 )

 

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