Paulo Barros e a metamorfose

 

          Você provavelmente não agüenta mais ouvir falar em carnaval. Que bom! Um texto a menos para você ler! Mas pode ser que você ainda esteja (como eu) um pouco revoltado com o resultado do desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Revoltado talvez não seja bem a palavra... Perplexo – isso, perplexo! Se é assim que você se sente, mesmo depois de quase uma semana do bizarro anúncio das notas dos desfiles deste ano, e apenas dias depois das escolas com as notas mais altas terem novamente saído - no eufemisticamente chamado “desfile das campeãs” - então, me acompanhe nessa breve divagação - enquanto tomo fôlego para escrever (na quinta-feira) sobre o impacto de ter visto o Harry Potter (ou melhor, o ator que interpreta Harry Potter, Daniel Radcliffe) nu no palco.
          De cara, preciso dizer que este ano desfilei na Viradouro, domingo, 18 de fevereiro. Saí, como meus amigos brincam comigo, na minha escola do coração: aquela que entra na avenida por volta da meia-noite do primeiro dia. Explicação: é o horário perfeito para alguém que, como eu, trabalha no domingo até por volta das dez horas da noite. Largo o serviço, encontro os amigos, pego a fantasia, ônibus, metrô – e chego a tempo de aproveitar a segunda melhor coisa ligada ao ato de desfilar: o agito do lugar onde a última coisa que se faz é concentrar, mas que, mesmo assim, se chama concentração! Respeitando essa “tradição”, já saí na Mangueira, Beija-Flor, Mocidade, no Salgueiro – e este ano, por sorte, deu Viradouro.
          Fiquei um pouco nervoso quando consultei a ordem de saída das escolas logo que decidi desfilar (depois de um hiato de dois anos). Sabia que quem estava no comando na Viradouro era Paulo Barros. Esse danado tinha me feito chorar no ano passado quando, ainda na Unidos da Tijuca, inventou aquele carro cheio de E.T.s nas bicicletas. E mais: um carro feito quase todo de discos de vinil (o que por si só já ganharia minha simpatia), onde, numa pista de dança “à la Embalos de sábado à noite”, bailarinos trocavam de roupa como que num passe de mágica encantando a galera.
          Nesse desfile de 2006, o salto de criatividade era tão grande que não resisti: fiz uma reportagem com Paulo Barros tentando entender de onde vinha tanta inspiração (tarefa inútil, claro, como se os grandes gênios andassem com uma fórmula no bolso prontos para expor segredos ao primeiro jornalista que perguntasse sobre o assunto...). E quis o destino que, em 2007, minha escola “do coração” (quer dizer, minha escola “do horário”) fosse justamente a Viradouro. Que responsabilidade!
          A primeira dificuldade já surgiu na hora de escolher a fantasia no site da escola. Minha favorita – geralmente a mais leve e descomplicada, sem deixar de ser bonita – estava esgotada (era a de “Caça-palavras”). Acabei optando pela “Batalha Naval”. Assim, vestido de algo que lembrava um marinheiro (não fossem as “bombinhas” que levávamos – todos os da minha ala – nos ombros), fui decorando o samba em minutos no sempre divertido trajeto de metrô.
          O primeiro impacto veio logo na concentração. O que eram aquelas pessoas vestidas de Lego? De Cubo Mágico? De Tangram? Seriam aqueles peões de xadrez mesmo os integrantes da bateria? Que inveja da ala dos caçadores de palavras... E aquelas baianas, tão escuras, será que funcionariam na avenida? Deixei todas essas questões de lado no momento em que entrei naquela curva deliciosa, que vai revelando aos poucos a vibração da Sapucaí (que parece que está só esperando você passar...) – o equivalente ao último momento de sanidade na subida de uma montanha russa, antes da queda livre trazer o total descontrole dos sentidos.
          Vou economizar espaço aqui, optando por não escrever sobre a sensação do próprio desfile – isso fica para uma outra hora (um outro ano?). Avanço rapidamente para os instantes seguintes quando, ao encontrar pessoas no camarote que visitei, e contar que tinha acabado de sair da Viradouro, recebia uma manifestação de puro êxtase. Era sempre um comentário do tipo: “Nossa, eu nunca vi nada igual!”, ou, “Não dava pra acreditar no que eu tava vendo...”. Eu mesmo ouvia tudo sem noção de como tinha sido o desfile como um todo – algo impossível para alguém que está ali na passarela. E só fui ver o espetáculo inteiro neste fim-de-semana quando, ao voltar de uma rápida viagem a Londres, peguei o material gravado de quatro escolas para ver: Beija-Flor e Grande Rio (respectivamente primeira e segunda colocadas este ano), e Viradouro e Vila Isabel (quinta e sexta colocadas). Foi aí que bateu a perplexidade que mencionei lá no início.
          Já havia lido por cima os comentários sobre as mais recentes folias das autoridades do júri. Fora as teorias conspiratórias de sempre (que podem se resumir a uma acusação simples e direta: tem sempre dinheiro influenciando a opinião dos jurados), as críticas às notas e às próprias classificações deixavam claro que o gosto de quem tinha sido escolhido ali para avaliar as escolas estava mais para o Carnaval tradicional do que para a inovação – algo que confirmei facilmente ao assistir as imagens gravadas dos desfiles daquelas quatro que já citei.
          Beija-flor e Grande Rio mostraram que a caretice continua emplacando firme e forte no século 21. O recado sombrio para as escolas que querem brilhar no ano que vem parece ser: não arrisquem! Apostar em plumas e brilhos é retorno certo. Carros alegóricos com medonhas figuras antropomórficas (que nunca, por maior que seja a perícia dos artesãos que as confeccionam, nunca deixa de ser versões de luxo daqueles bonecos de Olinda)? Vão nessa! Fantasias e alegorias que praticamente reduzem a figura humana desfilando à condição de um cabide ligado a um vibrador devem continuar em alta. Enquanto que a criatividade...
          Bem a criatividade sempre vai em frente. Não se pode parar uma cabeça como a de Paulo Barros. Mas pode-se sim lamentar que não estejamos mais numa época em que idéias diferentes – como a totalidade das que esse carnavalesco apresenta na avenida – eram premiadas. Não era assim lá pelos anos 80, início dos 90? Não foi assim que o talento de alguém como Joãosinho Trinta ficou conhecido no Brasil (e no mundo?). Mudaram os tempos?
O que a Viradouro apresentou este ano foi pura criatividade. Quer começar por onde: pelo castelo de cartas literalmente virado de cabeça para baixo? Pela bateria que chegou num carro alegórico? Pela coreografia do Tangram? Pelo cassino de Taj Mahal? Pelos coringas que giravam enormes dados? Pelo carro “Onde está o Wally”? Quer começar pelo começo mesmo, pela comissão de frente que fazia uma inacreditavelmente elaborada coreografia digna de um quebra-cabeças ambulante no seu jogo de embaralhar cartas?
          De qualquer ponto de partida, esse cara é uma fonte de idéias – e quer os jurados queiram ou não, já está fazendo escola (é uma questão de tempo até que a cafonice que agora é aplaudida – e que sobrevive como um caquético baile de carnaval de sociedade num salão fechado, com todo mundo dançando de dedinho indicador para cima – seja substituída de vez pelo elogio da originalidade que Paulo Barros semeou). O melhor exemplo este ano veio com a Vila Isabel e sua infinita disposição de reinventar um tema aparentemente monocórdio: a metamorfose.
          Sapos que viravam príncipes; fios que se transformavam em tramas; telefones que evoluíram para celulares; larvas que davam origens a borboletas; travestis (ou, sutilmente rebatizados em uma ala “as caricaturas”), homens de neandertal, super-heróis – todos desfilavam ao som de um dos sambas mais inspirados do ano (que decorei antes de a primeira metade da escola passar). O conjunto, criado pelo carnavalesco Cid Carvalho, era inusitado e original – mas inegavelmente passava por uma inspiração “barriana”. O que não desmerece nem um pouco a Vila...
          Saber que existe pelo menos uma brecha para mudanças já é alentador... O tal quinto lugar da Viradouro (e, por conseguinte, o sexto da Vila Isabel) vai ficar atravessado por um bom tempo. Enquanto quesitos abstratos e aleatórios (como evolução e harmonia) continuarem sendo manipulados ao sabor de uma estética batida – luxuosa sim, mas medíocre, em termos de inovação – só vai sobrar quintos e sextos lugares para mentes brilhantes como a de Paulo Barros (e seus discípulos, que, espero, sejam muitos). Mas a paciência deve trazer a recompensa para ele, que é o próprio agente da metamorfose.

Zeca Camargo
(Publicado originalmente no blog do autor [http://www.zecacamargo.globolog.com.br/] em 26/02/2007)

 

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