Carnaval globeleza é para inglês ver

 

          Não sou folião e, por isso, corro o risco de parecer um chato. Mas acho que a mídia nacional – as redes de TV, em particular – está sofrendo de algum tipo de miopia na cobertura que dá aos desfiles das escolas de samba cariocas (e, mais recentemente, paulistas também) e dos desfiles dos trios elétricos pelas ruas de Salvador.
          É certo que o país pára (mas o mundo, não!) durante o carnaval, o que reduz as opções de pauta para a tevê e os jornais. Além do mais, se o carnaval de outros tempos durava exatos quatro dias, hoje, graças ao amplo espaço que recebe na mídia, chega a se estender por quase dois meses, dependendo do calendário.

Trios e escolas de samba

          Mal se calam os jingobéis do Natal, a TV Globo já começa a veicular nacionalmente clipes de sambas-enredo das escolas que participarão do desfile de fevereiro ou março – dependendo do calendário, como eu disse.
          A Band já começa a copiar o modelito e, não podendo transmitir os desfiles do Rio ou São Paulo, investe, meses antes da festa, na divulgação do carnaval baiano.
          Quando, enfim, o carnaval chega, a Band passa a transmitir noite e dia o animado (pra quem está lá) desfile de trios elétricos pelas ruas de Salvador. E a Globo vem com sua transmissão ao vivo e na íntegra de quatro noites de desfiles de escolas de samba de São Paulo e Rio. Para o espectador que só quer relaxar e ver um filminho (nem que seja, pela enésima vez, o clássico vespertino Curtindo a vida adoidado) na Sessão da Tarde, fica a frustração: vai passar é um compacto com os melhores momentos dos desfiles da noite anterior.

Carnaval não pode parar

          Depois vem a cobertura – sempre ao vivo, para todo o Brasil! – da apuração dos resultados dos julgamentos das escolas campeãs. De São Paulo, na terça. Do Rio, na quarta-feira de cinzas. Para os telespectadores de Vilhena, em Rondônia, de Agricolândia, no Piauí, ou de Itapiranga, em Santa Catarina, que não conseguem desgrudar os olhos da telinha nessa hora, deve ser tudo a maior emoção e alegria.
          Mas aí vem a cobertura da festa das campeãs em flashes ao longo de toda a programação da tarde até o fim da noite. A overdose continua no final de semana, porque ainda tem o desfile das campeãs (agora com transmissão da Band e de quem mais quiser) e porque, na Bahia, o carnaval não pode parar.
          Enquanto isso, outros carnavais pelo país foram ignorados. Receberam apenas uns parcos minutos de reportagens nos telejornais, "pra inglês ver". Aliás, não apenas pra inglês, mas pra turistas de todo o mundo. Globeleza.

Gandaia vs. sofazão

          Nos últimos anos, os carnavais carioca e baiano têm colocado a pauta dos nossos repórteres a serviço da pauta de comércio exterior do país. Houve um tempo em que ríamos da nossa própria fama de "exportadores de mulatas" para a Europa, depois que perdemos a liderança internacional na produção e exportação de borracha e café, para o Sudeste Asiático e para a Colômbia, respectivamente.
          Agora, o quadro é outro: em vez de exportarmos as mulatas do Sargentelli, importamos turistas endinheirados para gastarem seus dólares aqui durante os quatro dias de folia – ou quanto tempo fizermos durar a farra. E, dessa vez, estamos preparados: nenhum malaio ou colombiano vai nos passar a perna. (Contudo, é bom ter cuidado com japonês, que gosta de patentear fruta brasileira e, além disso, já andou desfilando em escola de samba paulista...)
          Mas a mídia – inocente e útil – parece prestar-se a esse marketing caboclo com grande afinco. Na grande aldeia global em que o mundo se transformou nas últimas duas décadas, nossas tevês lotam sua grade de programação com uma cobertura intensiva e monótona de desfiles carnavalescos. Pouco importa se essa opção agrada telespectadores locais de tevês abertas de todo o país. A maioria da população, que não tem acesso à TV por assinatura, também não tem acesso a outro tipo de programação durante o carnaval.
          A opção das TVs parece ignorar ainda um outro aspecto: quem gosta da folia – a menos que não tenha mais idade ou saúde – vai pra gandaia. Quem fica no sofazão prefere mesmo é um bom filme àqueles intermináveis baticuns e desfiles de escolas e trios.

Samba e sambadinha

          E ainda vem o pior: as outras redes que não compartilham os direitos de transmissão dos desfiles, embarcaram de vez na cobertura dos bastidores do carnaval do Rio, São Paulo e Salvador.
          Atores e atrizes de menor expressão, humoristas ou quem está tentando ser (os engraçadinhos), ex-BBBs e outras celebridades instantâneas emergentes ou cadentes transvestem-se de repórteres por um dia para entrevistar as eternas figurinhas carimbadas que freqüentam os camarotes da Sapucaí ou do circuito Barra-Ondina e os acessos aos bailes mais quentes das noites cariocas.
          O formato é conhecido: perguntas óbvias e repetidas; respostas não-relacionadas ao que foi perguntado (porque os decibéis da bateria ou do trio elétrico ao lado não deixam o entrevistado escutar a pergunta e porque ele só está ali mesmo pra falar de seu novo disco, filme ou novela, independente de qual tenha sido a pergunta, afinal); e o indefectível pedido pra cantar o samba da escola ou – se mulher gostosa – dar uma sambadinha.
          O resto do Brasil não merece. Acho que o mundo também não.

De escolas e túmulos

          Não contesto a grandeza do carnaval carioca, como fiel manifestação cultural de um povo. Ou sua relevância na construção de nossa identidade nacional. O mesmo pode-se dizer do carnaval baiano. Se o primeiro é o inventor da escola de samba, o segundo inventou o trio elétrico – e ambos são produtos autenticamente brasileiros, sem par no mundo. E o que dizer do carnaval de Pernambuco, dos maracatus e do centenário frevo? Este, embora contemplado com reportagens especiais nas semanas que antecederam a folia, não recebeu a mesma cobertura ao vivo, reservada aos seus compatriotas tipo exportação, mais ao sul.
          A cultura de massa, como sabemos, alimenta a mídia e dela se alimenta. Produtos culturais recém-concebidos, tornam-se, com a intervenção da mídia, imediatamente populares. Expandem-se, hoje em dia, numa velocidade que nem McLuhan e seus discípulos puderam imaginar no último quarto do século que passou. O sucesso de um novo produto se mede pela sua presença na mídia e isso gera novas expectativas, desejos, carências, demandas – e mercados.
          As escolas de samba de São Paulo são conseqüência do sucesso das escolas de samba cariocas, e cresceram impulsionadas pela força da economia paulista e da determinação objetiva e pragmática de seus empreendedores. Hoje, rivalizam em estilo e linguagem, mas se equivalem em dimensão e organização. Profissionalizaram-se e já negociam entre si os "passes" de mestres-salas, carnavalescos, aderecistas, sem o estardalhaço, por exemplo, de um Fluminense que trouxesse um Rivelino do Parque Antártica para as Laranjeiras. São Paulo "túmulo do samba"? Outros tempos.

Leblon nacional

          O fato é que o carnaval brasileiro, rico em sua diversidade, corre o risco de virar uma "novela". Assim como a teledramaturgia tenta transformar, pelo esforço repetitivo, o país inteiro em um Leblon ou favela, com sua prosódia, costumes e mazelas, a mídia não se dá conta (ou tem algum interesse específico nisso) de que está criando um modelo de carnaval globalizado e puramente mercantil. Um modelo asséptico e padronizado que, se encanta e seduz turistas de todo o mundo, cria artificialidades que descaracterizam nossas manifestações culturais mais autênticas, minam nosso patrimônio imaterial e ameaçam nossa identidade como nação.
          Uma reflexão séria sobre esse problema nos conduz, inevitavelmente, à necessidade e premência da regionalização da produção para rádio e tevê. Passado o carnaval, 2007 vai começar.

José Carlos Aragão
(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa  em 27/2/2007)

 

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