Crioulo doido

 

          Houve um tempo em que os enredos das escolas de samba eram tão incongruentes e sem sentido que inspiraram Stanislaw Ponte Preta a compor o seu genial "Samba do crioulo doido". Hoje o disparate aparece não no desfile, mas em geral na quarta-feira, quando são anunciados os resultados. A apresentação logo mais à noite das campeãs vai ser a ilustração de como são subjetivos e aleatórios os critérios de julgamento, em cujo mérito não quero entrar. Registro apenas as incoerências. A vencedora não era a favorita, e uma das grandes favoritas, a Unidos da Tijuca, ganhadora do Estandarte de Ouro, tirou em sexto lugar. Por pouco, a Grande Rio, que estourou o tempo e desfilou quase correndo, ganhava o campeonato. Conseguiu ser vice com gosto de campeã. Vai entender.
          Como explicar que a Tijuca, que atingiu o mais elevado nível de excelência de acordo com os pontos - 29 notas 10 no total -, tenha ficado muito abaixo da Grande Rio e da Vila Isabel, aquela com 28 notas 10 e esta com 26? Um dos consensos entre público e crítica foram os carros da escola de Paulo Barros, que já em 2004 inventara as alegorias humanas com a impressionante "Criação da vida" representando a cadeia do DNA.
          Este ano, carros como o do abre-alas (Resumo da Ópera), o da discoteca, com grupos de cantores (Elvis Presley, Michael Jackson e Tony Tornado) se revezando na pista, aparecendo e desaparecendo magicamente do palco, sem falar nas incríveis bicicletas voadoras do ET, seriam suficientes para consagrar Barros como o mais inventivo artista deste carnaval. Pois bem. No quesito "Alegorias e Adereços", a escola do Borel obteve apenas uma nota 10. Li a entrevista de uma jurada criticando os ETs por serem bonecos e não "gente pulando" e alegando que nem todos os carros eram geniais. Será que as alegorias da Vila (três 10) e da Grande Rio (dois 10) foram todas geniais? Ou quase?
          É fácil, porém, censurar os jurados por seus gostos e idiossincrasias, como se qualquer um de nós não estivesse sujeito a isso. Mas o problema vai além deles. Do mesmo modo que no Judiciário os juízes dependem do Código Penal, aqui o problema é o regulamento, que dá margem a uma série de distorções como, por exemplo, entregar a quatro jurados, não a todos, o item "conjunto". Ou seja, o conjunto de uma escola é decidido não pelo conjunto dos jurados, mas por alguns, assim como a evolução também (uma jurada disse que de onde estava não viu a correria da Grande Rio). Conclusão: acaba-se julgando o todo pela parte.
          Sei que já foram experimentados outros critérios, e abandonados por não terem dado certo. Vai ver que não existe nada melhor mesmo. Mas será que não é possível dar um pouco mais de objetividade a esse jogo de discrepância e disparate em que se transformou o julgamento dos desfiles das escolas de samba?

Zuenir Ventura
(Publicado originalmente no Jornal O Globo em 04 de março de 2006)

 

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