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Maio deveria ser o mais triste dos meses para os brasileiros. Assim pensei em começar este artigo. Depois de mudar e riscar, pensei em começá-lo com uma pergunta: “Quem dá mais por um artista feito no rigor da arte, sem introdução e sem segunda parte, que expressa três terços de todo brasileiro?”. Depois me ocorreu que bem melhor seria uma crônica em feitio de oração, com humor, para suportar a paixão, com harmonia, ritmo... Mas depois vi que esses começos, essa crônica, tudo que eu tentasse era ridículo e medíocre. Porque eu queria simplesmente dizer: Maio deveria ser o mais triste dos meses porque nesse mês faleceu Noel Rosa. E isto ninguém mais nota. E ninguém dá mais por isto, ninguém dá mais um mil réis por isto, e isto é triste, e isto é de um cômico que zomba, porque Noel foi e é o maior compositor de música popular brasileira. Está visto, portanto, que todo começo, mal começasse, começaria mal. Porque
Pela décima vez
Jurei não mais amar Pela décima vez
Jurei não perdoar O que ela me fez O costume é a força Que fala mais alto
Do que a natureza E nos faz dar prova de fraqueza.....
Ou porque
Gago Apaixonado
Mu-mu-mu mulher Em mim fi...fizeste um estrago Eu de nervoso Estou fi-fi... ficando gago.....
Agora vêem por que a indecisão, agora sentem por que esse último recurso de citar o começo de dois sambas para começar um esboço sobre os contornos de Noel. Se ainda não consegui me fazer entender, procurarei ser mais claro: Noel é um compositor tão rico quanto a vida, e quanto mais a gente procura apanhá-lo, pegá-lo, nem que seja para um riscado de caricatura, mais ele nos foge, escapole, por entre os nossos dedos. Ele fica a sorrir de nossa vã pretensão. Por onde tentemos pegar Noel, ele se furta à nossa frente. Vejam por quê. Se tentamos agarrá-lo pelos dados biográficos, a nossa tendência é situá-lo como o personagem ideal de um dramalhão de circo.
Ao nascer, foi arrancado a fórceps, o que lhe afundou o maxilar inferior e lhe deixou paralisado o lado direito do rosto. Esse foi um defeito que se tornou pior ao longo dos anos, porque se agravou depois de duas cirurgias. Na escola, a crueldade das outras crianças o apelidou de “Queixinho”. Isto ocorreu até o dia em que descobriu o bandolim, e então, segundo suas palavras mais tarde: “A menina do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de garoto que começava a espiar a vida”. Naturalmente, o escudo do bandolim, e do violão depois, era pouco. Quando o queriam elevar, além do plano puramente físico, diziam que apesar de feio, baixinho e magro, a sua inteligência e sambas conquistavam mulheres. Se alguma vez ouviu semelhante elevação, Noel deve ter sorrido com amargura. Porque
Dama
do cabaré
Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci você Fumando cigarro, entornando champanha no seu soirée Dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra Só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra.
Em frente à porta um bom carro nos esperava Mas você se despediu e foi pra casa a pé No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré
Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, não me lembro de quem Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa de diplomacia, mas não gosta de ninguém.
Pois sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em samba. Isto consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da imagem, se alguma vez lhe deixou alguma foto: “Como prova de amizade, Ceci”.) Então se diz que ele transformava a vida em samba, mas não se esquece que nos intervalos da arte Noel evitava comer na frente dos admiradores. O queixo danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de
zôo. E por isso nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos, de comidas leves, combinados a muitos e muitos e muitos cigarros, que deviam tornar um homem, acreditava-se, um ser de aparência bonita. Ele, que já havia sido chamado, num duelo de sambas, de O Frankestein da Vila. Mas com um cigarro permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta alimentar, estilo de vida e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre, hemoptise, pulmões podres. Um gênio arrebentado em plena criação e juventude. Que se vai, aos 26 anos, no dia 4 de maio de 1937.
Meio trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que foi chamado de Frankestein pelo sambista Wilson Batista num momento de raiva (e como são sinceros esses momentos de raiva), esse mesmo Noel tuberculoso, raquítico, é o homem que diz em uma entrevista à revista O Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação existiria entre o amor e a música:
“Romeu e Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão”.
É esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo que numa madrugada, ao nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos que voltavam de automóvel, de uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à espera do bonde, se destacava pela negação: terno branco à procura de um corpo, rosto que descia à procura de um queixo. Então os amigos param o carro e mandam-no embarcar. Ele entra e vai pedindo:
Me sirvam um conhaque.
Por que isto, Noel?
Por quê?! Eu estava esperando um bar, quando vocês passaram.
É o mesmo homem que à sua magreza de doente assim se referiu:
Tarzan, o filho do
alfaiate
Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte Nem conheço futebol O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro
Sem ver um raio de sol A minha força bruta reside Em um clássico cabide Já cansado de sofrer Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura Mas que pesa e faz doer
Eu poso pros fotógrafos E distribuo autógrafos
A todas as pequenas lá da praia de manhã Um argentino disse
Me vendo em Copacabana No hay fuerza sobre-humana Que detenga este Tarzan!
De lutas não entendo abacate Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar Sou incapaz de machucar uma formiga Não há homem que consiga Nos meus músculos pegar Cheguei até a ser contratado Pra subir em um tablado Pra vencer um campeão Mas a empresa pra evitar assassinato Rasgou logo o meu contrato Quando me viu sem roupão.
No entanto, se tentamos apanhar Noel a partir da maioria de suas letras, que diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da oração, da queixa de um homem a Deus,
Último desejo
Nosso amor que eu não esqueço E que teve o seu começo
Numa festa de São João Morre hoje sem foguete Sem retrato e sem bilhete Sem luar, sem violão Perto de você me calo Tudo penso e nada falo Tenho medo de chorar Nunca mais quero o seu beijo Mas meu último desejo
Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga Pedir que você lhe diga Se você me quer ou não, Diga que você me adora
Que você lamenta e chora A nossa separação. Às pessoas que eu detesto Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é um botequim Que eu arruinei sua vida Que eu não mereço a comida Que você pagou pra mim
Diante de uma letra assim, diante de uma melodia que não podemos expressar em palavras, diante da expressão de tal sentimento, sempre novo, tão vivo e primordial que nos faz penetrar um cheiro de sal e mar pelo nariz, diríamos, que dor, que felicidade trágica na expressão! A impressão que Noel nos deixa, em seus versos mais cruéis, é que ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como um indivíduo póstumo, deveríamos dizer com mais precisão que ele pinta e canta enternecedores testamentos. O dicionário dirá que testamento é um “ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio, total ou parcialmente, para depois de sua morte”. Ora, unilaterais, solenes e limitados por vezes são os dicionários. Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim, que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E aqui cabem duas observações. A primeira delas é que o patrimônio do poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a miséria humana A outra observação fala da ambigüidade dos seus rompimentos amorosos. Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no sentimento:
Jurei não mais amar Pela décima vez
Jurei não perdoar O que ela me fez...
E
nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um
precioso dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma
observação fina. Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o
verso “Você nela me dizia que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos
que já passamos noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas,
pelo estilo de vida ou por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão
egoísta por fim quanto animais mimados, e por isso, “ não gosta de
ninguém”. Ele é capaz de em linhas de versos impor uma
reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na
tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida?
“O costume é a força Que fala mais alto
Do que a natureza”
Ou
“Quem acha vive se perdendo” ou
“Não posso mudar minha massa de sangue”, para dizer que é suburbano, do lado marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino.
Não tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos responsáveis pela projeção, pela individualização da letra na canção do Brasil. Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na música. Aquele fenômeno destacado por Hesse num conto, quando observa: “Era surpreendente constatar como um verso cantado soava completamente distinto do lido ou recitado. Na leitura um verso era um todo, tinha um sentido, constava de frases. No canto constava só de palavras, não havia frases, não havia sentido; mas em troca as palavras soltas cantadas, arrastadas, adquiriam uma estranha vida independente, às vezes eram até sílabas, em si totalmente carentes de sentido, que se tornavam independentes no canto e ganhavam uma imagem”, se isto é verdade na canção em geral, e mais particularmente no canto religioso, em Noel ganha outro sentido. A sua letra é capaz de nos elevar a um sentimento de beleza ainda que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros, os não-brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer Noel poderão com mais isenção dizer se há razão no que digo. Leiam isto:
Três apitos
Quando o apito
Da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você. Mas você anda
Sem dúvida bem zangada Ou está interessada Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito De uma chaminé de barro Por que não atende ao grito tão aflito Da buzina do meu carro?
Você no inverno Sem meias vai pro trabalho Não faz fé com agasalho Nem no frio você crê Mas você é mesmo
Artigo que não se imita Quando a fábrica apita Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê Como sofro cruelmente Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno Poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe por quê. Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano Faço junto do piano Estes versos pra você.
Será que foi possível sentir, somente com a letra, somente no silêncio, o perfume dessa delicada flor? No romance Os Corações Futuristas essa composição fala: “Cai um silêncio, a agulha fica raspando. Até o ponto em que Canhoto se levanta e põe Três Apitos, de Noel. Isso dói no peito e faz aumentar a sede. O uísque jorra, parece. Os copos com gelo ficam a meio, com aquele uísque safado, estragado, distribuído com uma fraternidade que a comunhão da santa hóstia da santa missa jamais conseguiu. Bebem, calados, amando a vida amarga e ruim. ‘Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você' ...”.
O X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento, uma reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os estranhos a seu meio. E não se diga por favor que Noel é um homem educado porque estudou Medicina, como se esse curso desse educação estética e humana a alguém. Não se diga, ainda que se aceite essa ilusão: Noel apenas começou essa humanidade de anatomia. Nem se diga que ele viveu e transitou em meios mais sofisticados: se por esses ambientes passou, ele gostava mais e era querido nos ambientes marginalizados, dos malandros, e da negrada. (Há um depoimento de Dona Zica, de Cartola, sobre isto.) Talvez com mais propriedade se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais tristes, e tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e desgraça zombou. Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: “Na vida importa mais o que fazemos do que nos fazem”.
Com Noel, o X do problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que ele é um artista de excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho livresco: Noel é um artista total, aquele artista que todos sonhamos, ou deliramos em noites de febre e loucura, algum dia numa felicidade ou maldição ser. Ele é trágico, satírico, lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro.
No dia 5 de maio de 1937, um jornal do Rio pôs em manchete: “A morte prematura de Noel Rosa”. Hoje percebemos melhor que mais prematura que a sua morte, aos 26 anos de idade, mais prematura que a sua morte foi a sua vida entre nós brasileiros. Até hoje, em 2004, ainda não sabemos o que fazer diante da sua humanidade. Se assim não fosse, maio não teria passado tão triste, tão oculto. Sem nenhuma lembrança, sequer, de que num maio assim perdemos o nosso Frankestein brasileiro. |