Espelho, espelho meu...

 

          Damos continuidade a nossa conversa buscando identificar o papel da alegria no desfile das escolas de samba. Num breve passeio histórico identificamos o entrudo, onde tanto elite quanto o povo procuravam uma forma de descontração e alegria. Mesmo depois de marginalizado, a brincadeira dos limões de cheiro fôra capaz de arrancar gargalhadas dos que se atreviam a praticá-la – geralmente às escondidas e a apanhar subitamente os distraídos. Não foi diferente com o carnaval realizado nos salões, nem mesmo com as luxuosas sociedades. O samba, por sua vez, proporcionava muita alegria, mas também muita tensão por parte dos bambas que eram constantemente reprimidos pela polícia. Passado-se os anos, o estilo musical encontra seu lugar, não sendo mais negado e sim destacado como elemento de nossa identidade cultural, juntamente com a capoeira e, continua até hoje proporcionar muito contentamento.
          Do entrudo, blocos, sociedades... ao desaguar das escolas de samba, o país parava e ainda pára pra ritualização da alegria. Afinal, carnaval é mesmo sinônimo de alegria! Embora a disputa pelo domínio da festa sempre tenha existido, em um ponto ricos e pobres concordam: No carnaval a lei é ser feliz. Todos se contagiavam - e ainda se contagiam – com a febre carnavalesca que atravessou mares e se estabeleceu de vez aqui, montando sua moradia.
          Nos anos 70, assistimos um duelo traçado entre o luxo e a alegria. Um confrontamento que teve a luxuosidade como campeã. Daí em diante, a estrutura dos desfiles se modificou significativamente, sendo em seguida a profissionalização também mais valorizada. A descontração e a espontaneidade vão saindo de cena e ficam cada vez mais fadadas ao esquecimento, uma vez ou outra lá estão em desfiles de concepção mais simples e em escolas mais tradicionais.
          Os campeonatos nos revelam quais elementos são mais valorizados. Todo contexto comprova que o samba já não mais serve como pano de fundo para a realização deste rito, que a princípio cultuava exclusivamente a alegria. As escolas passaram a ser mais belas e organizadas, porém com menos interação com o público, a técnica se torna imbatível e ganha visibilidade, é a vez da teatralização e do impacto aparecerem como elementos mais importantes... Estamos no final do século XX e início do século XXI!
          Plástica, encenação, impacto, técnica, organização... reedições? (Opa! Já falamos disto antes!). Nos surpreendemos, impressionamos e ficamos muitas vezes imóveis e boquiabertos. Mas o sentimento de felicidade e de contentamento, a satisfação que a cultura deve e pode proporcionar, entra pelas brechas e não é mais o grande propósito das agremiações, salvo às exceções que só vêm pra confirmar a regra geral.
          Carnaval virou negócio, institucionalizado por regras. Tornou-se complicado e difícil despertar sorrisos, pois os foliões estão vestidos com gigantescas fantasias e têm a missão de atravessar rapidamente a longa Marquês de Sapucaí, cantando um samba pouco conhecido pela platéia, que possivelmente morrerá ao atravessar a praça da apoteose. O público fora “adestrado” para ver coreografias, cenas chocantes, excesso de simbologia, tudo aquilo que compromete o processo comunicativo entre escola e público, afinal carnaval se faz hoje pensando nos jurados.
          Se sambódromo associa-se ao movimento e à pressa dos autódromos, apoteose quer dizer o auge de um espetáculo e carnaval não poderá deixar de ser sinônimo de alegria. Primar por um samba bem elaborado, por apresentações mais simples, que envolvam completamente foliões e expectadores deveria ser objetivo maior das escolas de samba e, o marketing, a promoção, os clichês e todos os elementos de ordem capitalista que se apropriaram desta manifestação cultural deveriam estar em segundo plano. Eis um grande desafio: preservar nossas raízes, sem deixar de progredir e estar conectado às transformações sociais.
          Temos que aprender um pouco mais com a Império Serrano e a São Clemente, no momento em que fizeram a crítica do caminho que as agremiações trilham. Necessitamos vencer essas provocações e construir um novo modelo que coloque em harmonia cultura e capitalismo. Liberdade, arte e manifestação cultural estão intimamente ligados e não podem estar tão submetidos a interesses particulares, caso contrário perdem sua essência. A razão deve ser mantida, que a lógica seja concebida, as normas estabelecidas; mas que no carnaval podemos perder a razão, cair na folia e atender um chamado que vem dos tambores e pandeiros e, assim termos a ilusão de que naquela ocasião nossos problemas foram suspensos, as dificuldades esquecidas, tudo em nome da alegria.
          Desta forma alimentamos a alma, nos tornamos nobres, deuses, demônios e deixamos o cotidiano de lado. Assim nos sentimos motivados para cultuar a divindade da alegria carnavalesca, nos alegramos, sorrimos, dançamos e cantamos ao som de um refrão, que como este, exalta a felicidade na passarela: “Diga espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz que eu...”

Alessandro Ostelino
(Alessandro Ostelino é Relações Públicas, Pesquisador de carnaval e Pós-graduando em Educação Superior)

 

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