Cartola, se as rosas falassem |
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O que as rosas diriam sobre Cartola, se falassem. A lembrança e a beleza eterna do "fino compositor", cuja arte é uma vitória contra preconceitos e burrice.
(Ouvir isto, na voz do compositor, em Cartola, discos Marcus Pereira – ouvir isto e ver o dia com os mesmos olhos é o mesmo que ser de ferro e pedra, não ter 54 anos, não ter conhecido As rosas pela primeira vez em 1976, ao lado do cine São Luiz, recebendo a brisa da tarde do Capibaribe, sem nenhuma certeza de que estaria vivo no outro dia, quem sabe, se continuaria a viver naquela mesma tarde. Ouvir isto e não sentir vontade de sair a correr pelas ruas, anunciando: “ouço Cartola, eu sou humano!”, ah, ouvir isto e não receber o cheiro do mar, o sal nos olhos, ah, é simplesmente não ter memória nem caráter nem identidade nenhuma.)
(Em 1978, como em outros anos, houve um casal que se separava para quem esta canção foi como uma profecia. Ainda que, como indivíduos, tenham tido uma trajetória de sucesso, material, político, digno de notas nos jornais, ainda assim souberam afinal que todo o conseguido era um amontoado de troféus mortos. Para quê tanto empenho, se afinal a felicidade dos amantes não se completou? Vale mesmo a pena ganhar o mundo, lutar, vencer, se ganhar, ganhar, é perder, perder? Se até mesmo o que não se perde é inútil ao fim, vale mesmo a pena vencer o mundo? Então os amantes não possuíam essa perspectiva. Então havia um ser a um canto, a ouvir interminavelmente o vaticínio de Cartola. Que o mundo era um moinho, que o mundo reduziria tudo a pó, que mal começavam terminavam, que na alvorada de um sentimento havia o ocaso, que no amanhecer havia uma noite só e imensa. De repente, quando se pensava que o amor venceria tudo, uma solidão que era um exílio da identidade, uma solidão em que se continua a viver por inércia. Então compreendiam menos, então pensavam que a poesia era só a expressão de um sofrimento. Esta era a sua experiência. Como pedir aos cegos as tonalidades do azul? É preciso ter visto a luz para melhor sentir a sua ausência. Então não compreendiam que um músico, com a sua arte, tomava conta da alma da gente, e de tal maneira, que pensavam: “isto sou eu”. Este conselho, esta advertência à mulher que parte e deixa em cada esquina a própria vida, esse lamento do amante desprezado deixou de ser de Cartola, é de todo amante, no Recife, em Olinda, em São Paulo, em Roma, em Madri, em Hong Kong, em Marte, em qualquer galáxia onde houver humanidade:
Em 1977, um senhor de cabelos que se tingiam de cinza entrou sozinho no Teatro do Parque, no Recife. Dir-se-ia um eletricista, parecia um eletricista, porque era negro e possuía um ar de tranqüila e majestosa distinção, sem alarde. Um operário, na humildade e discrição. Camisa dupla face. Ele iria, deveria ir cuidar de algum fio solto, ou rever a iluminação do teatro, pensaram todos. Então os que esperavam na fila, notaram os seus grandes óculos escuros, o seu nariz, o seu rosto oval, de um Modigliani na África. Então perceberam que o eletricista era o operário de almas Angenor de Oliveira, o compositor amado e amigo de Noel Rosa, o homem a quem Nelson Sargento não ousava pedir parceria, por vergonha, diante do “compositor finíssimo”. Como, Cartola! Sem tapete vermelho, sem carro reluzente, sem guarda-costas, sem roupas de griffe que marcam a diferença de mercado nas almas. Sem trombetas, ele que teria todos os direitos de se anunciar. Então veio a lição, mais uma, insinuada pelo cidadão discreto, de cabeça baixa, a entrar no teatro: que a melhor arte esconde a sua arte, que o artista é a sua arte, que tudo mais é dispensável. Na ocasião, lembro, apenas duvidamos que aquele homem tivesse mesmo a poesia de um Cartola. A gente burra, carregadinha de preconceitos, não poderia esperar que naquele negro, naquele trabalhador braçal, batesse um coração que fosse o nosso. |
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Urariano Mota |
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