Paixão de Carnaval:
As aventuras de um doente do pé na avenida

  Eu desfilei

           Pedro Aranha é ruim da cabeça e doente do pé. Não gosta de samba nem de folia. No domingo de Carnaval, no entanto, o vemos usando pela primeira vez na vida meia-calça roxa, bolero dourado e calça bufante de pajem medieval. Na cabeça, chapéu de metal com antena - que faz com que ele se sinta um ET nos sentidos real e metafórico da sigla. Pedro Aranha está no Rio por uma boa causa. Ele foi encontrar-se com a namorada, Lenita, que o convidou para passar o Carnaval na cidade. Como não conhece ninguém no meio sambístico, só tem uma alternativa. Desfilar em "ala de turista", que é como os cariocas chamam pejorativamente as alas de escola de samba que vendem fantasia aos doentes do pé, que, por serem também ruins da cabeça, ousam invadir o Sambódromo - como nosso herói.
           Pedro Aranha é o protagonista do romance Carnaval, que lanço neste mês. Ele é um personagem de ficção, mas as alas de turista são reais. E constituem divertimento - acreditem! - bem mais interessante que assistir ao desfile da arquibancada do Sambódromo. Muitas das aventuras narradas na saga de Pedro Aranha eu mesmo vivi, nas duas vezes em que saí na Ala do Jonas, uma das mais tradicionais do Carnaval carioca, e que a cada ano se abriga numa escola diferente (Império Serrano em 2004, Portela em 2005, Império e Imperatriz Leopoldinense em 2006). Participar de ala de turista é uma balada que dura cerca de 15 horas, e é programa ideal para fazer em grupo. Começa quando todos se encontram na casa do amigo carioca. Sim, é conveniente que haja um "amigo carioca" para que as fantasias, entregues em domicílio, fiquem guardadas na casa dele. Como bom amigo carioca que sou - embora tenha nascido no bairro paulistano do Bom Retiro -, eu me responsabilizo também pelo fornecimento de bebidas à multidão que me visita todos os anos no Carnaval. É necessária pelo menos uma dose de uísque - ou caipirinha, ou cerveja - para sair na rua de meia-calça roxa e chapéu de ET. Como diria meu amigo e também escritor Xico Sá, outro habitué da Ala do Jonas, tem de ser muito macho.
           De casa, devidamente abastecidos de álcool, seguimos para o metrô. É o único dia do ano em que as escadas rolantes não funcionam para que a fantasia não fique presa nos degraus. A brincadeira começa dentro do trem, onde vamos cantando. Já aos berros, chegamos à estação de destino, ao lado do clube Rio Ativa, local da festa da Ala do Jonas - algumas alas de turista promovem festas prévias em bares ou clubes, e essas são as melhores. Enquanto os maquiadores transfiguram nosso rosto, bebemos a segunda caipirinha e ensaiamos o samba-enredo.
           O desfile propriamente dito dura apenas 20 minutos, tempo médio de permanência da ala na avenida. São 1 200 segundos intensos - é impossível não se emocionar com a platéia cantando o samba, encharcar-se com o próprio suor e com o alheio, tropeçar, cair, se levantar, espiar as passistas nuas, ficar cego com os refletores, perder pedaços de fantasia pelo caminho. Vinte minutos e tudo se acaba. Acaba? Não. Agora é que começa a balada propriamente dita. Na Lapa, onde os foliões suados vão matar a sede bebendo a antepenúltima, a penúltima, a última, a primeira saideira, a segunda, a terceira, a quarta... O programa só termina de manhã, quando chega a hora de ir para a praia. E custa quase o mesmo preço de assistir ao desfile. As fantasias das alas de turista saem entre 250 e 600 reais - mais barato que camarote, pouco mais caro que arquibancada. É um programa viciante. Saí no ano retrasado, no passado e vou sair de novo neste. Mesmo que não quisesse, seria obrigado. Minha casa de "amigo carioca" é novamente ponto de encontro de paulistas. Neste ano virão também portugueses. Espanhóis. Americanos. E um turco, Mustafá - famoso por cantar sambas de enredo com perfeito sotaque carioca.
           E Pedro Aranha encontrou Lenita? Existem duas maneiras de descobrir. Sair na Ala do Jonas (21/8867-0032), na qual os dois combinaram seu final feliz. Ou correr até a livraria mais próxima e comprar Carnaval.

Joćo Gabriel de Lima
João Gabriel de Lima é repórter da sucursal carioca de VEJA e romancista, autor de O Burlador de Sevilha (Companhia das Letras, 2000) e Carnaval (Objetiva, 2006)
(Publicado originalmente na revista Viagem e Turismo - Edição 124 - fev/2006)

 

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