Uma Vila cada vez mais distante do bairro

 

          Muitas atas da Unidos de Vila Isabel foram redigidas no porão da Rua Conselheiro Autran 27, onde vivia seu Eurico, mais conhecido fora da escola como Moreira. Ele levava os rascunhos das reuniões e passava-os ao futuro médico que morava no andar de cima para que ele pusesse em bom português as importantes decisões tomadas na casa de seu China. Acontecia ali pelos começos dos anos 50, quando cada morador do bairro tinha um compromisso afetivo com a escola. Comerciantes assinavam o livro de ouro, estudantes redigiam atas e enredos, donas-de-casa ajudavam nas fantasias. A escola e o bairro eram uma coisa só. Hoje, Vila Isabel são duas: o bairro, que empobrece e enfeia enquanto tenta “manter a tradição”, e a escola, campeã do último carnaval.
          Em 1988, o primeiro título no grupo principal
          Isso dito, chega de saudade. Tanto as novas caras que os bairros do Rio adquiriram como o engrandecimento das escolas eram inevitáveis. A noção de bairro (viva numa época em que ainda se usava o termo bairrismo) perdeu-se para sempre. Neste princípio de século, já não há quem se ufane de morar neste ou naquele lugar, pois o progresso, se fez a cidade crescer, encurtou as distâncias e converteu cada carioca num apátrida em matéria de esquina que freqüenta. Ele já não é de lugar algum. Mora ali, mas não é dali. Razão pela qual a maioria dos dirigentes e figurantes da Mangueira não reside na Mangueira, os da Beija-Flor não são de Nilópolis, os da Portela raramente vão a Oswaldo Cruz, os da Grande Rio evitam Caxias e os da Viradouro só atravessam a baía em véspera de carnaval. Progresso obriga.
          Tudo isso vem a propósito de se falar tanto, desde quarta-feira, na “ascensão da Vila”, associando-a às “tradições do bairro”. Será? Em 1988, quando da conquista de seu primeiro título no desfile principal, também se falou que a escola tinha deixado de ser pequena para, dali em diante, brigar de igual para igual com as grandes. Não demorou muito, a Vila estava sendo rebaixada para a segunda divisão, mergulhando num constante sobe-e-desce que, nos 15 anos seguintes, provou que sua falsa grandeza era mesmo pequena. Ascensão? As ascensões da Vila, se se pode falar assim, incluindo a surpreendente vitória deste ano (os experts em escola de samba só deram bola para ela quando a apuração ia chegando ao fim), não têm nada a ver com a tradição do bairro. Dependem, sempre, do dinheiro que pinta, do patrocinador da vez, da esperteza do próximo oportunista, tudo gente de fora.
          No texto que Nei Lopes — Salgueiro de coração, Seropédica de residência e Vila Isabel de estado d'alma — distribuiu via internet para saudar a vitória de azul-e-branco, há muito da essência dessa coisa de bairro e escola, que ele viveu muito de perto quando morava na Torres Homem. Em vez de incensar os dirigentes que hoje dizem ter levado à Vila ao título, recorda as memoráveis derrotas, um nono lugar, um 11 lugar, um 12, tropeços que escola andou cometendo de 1980 para cá, mas dos quais o bairro nunca se envergonhou. Aquela sim, Nei parece dizer, era a Vila dos seu amores (expressão pedida emprestada a um samba de Marília Batista). A Vila de Juca, Inaldo, Jucelino, Chico Banerj, Osvaldo Funéreo, Agrião, Bazinho, Carlinhos Sete Cordas, Paulinho da Aba, Dunga, Tonelada, Trambique e, de especial significado para Nei, Aluísio Jarrão. Alguns já se foram, outros resistem. Não se pense que o artigo é uma saudosista apologia da derrota, dos maus dias da escola. Nei lembra com emoção a kizomba de 1988, propõe um brinde à campeã de 2006. Viva a Vila! Só acha que o bairro foi ficando cada vez mais distante, dele, de seus sambistas, de todos nós, dele mesmo.
          Há uma ironia em tudo isso. A Vila venceu este ano sem o concurso do único morador do bairro que, tendo convivido com os heróicos pioneiros da escola, é da Vila até no nome: Martinho, seu presidente de honra. Pois não é que os forasteiros cartolas recém-chegados vibram com sua ausência, chamam-no de “mal-educado” e referem-se à escola como “nossa casa”?
          Não era bem esta a Vila do seu Eurico.

João Máximo
(Publicado originalmente no jornal O Globo em 05 de março de 2006)

 

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