A Portela é a campeã do carnaval
 

          Que mané Unidos da Tijuca, que nada. A Portela é a escola do futuro. Percebi isso enquanto ainda tentava me acostumar com um samba que procurava rima para HIV. Não rima. É igual amor e dor. Foi nessa hora que surgiu a águia. Ali, naquele momento, a escola de samba que cantava as oito metas da ONU, acrescentava mais uma a seu enredo: explicar direitinho o que a águia fazia vestida de coruja das Óticas Brasil. E foi o que a Portela fez. E o fez pela metáfora da Fênix, aquela ave sem-vergonha que teima em renascer das cinzas.
          As metáforas vulgares costumam ser cruéis com as crônicas de improviso. As metáforas vulgares, desde a Bíblia, enterraram milhares de reputações, ainda que tenham salvado boa parte da produção filosófica no mundo: os botequins perderiam metade da graça sem as parábolas sagradas. Mais que tudo, as metáforas humanizam e vulgarizam certas profissões, a começar pela do carnavalesco. Nada mais vulgar, por exemplo, do que o engenheiro que compara a vida a um edifício em construção. Ou o cozinheiro que transforma convivência social numa receita de frapê de coco. Ou o analista de laboratório que disseca o caráter do paciente pelo que encontra guardado num vidrinho. Ou a stripper que faz de seu espetáculo um ciclo da vida às avessas, em que nossa adolescência está em algum ponto perdido entre os espartilhos e a etiqueta da calcinha preta. Vulgaridades. Como o cronista que faz do desfile uma metáfora sobre a sedução. E faz da Portela o seu Botafogo.
          No mundo do samba, escolhi minha escola da mesma forma que os paulistas costumam escolher as deles: pelo time de coração. Lá, sabe-se, o ponto alto do carnaval não é o desfile em si, mas a apuração. É quando as torcidas das escolas - algumas delas nascidas de torcidas de futebol - mostram todo o samba no pé. Na verdade, mais pé do que samba. Comigo, devo confessar, aconteceu a mesma coisa. Não escolhi a Portela por causa dos sambas de Paulinho da Viola, da beleza da Clara Nunes ou dos partidos altos do Candeia. Não escolhi a Portela, entrego os pontos, nem pelos dois espíritos portelenses, Cristina Buarque e Mauro Duarte, que tomavam cerveja com meu pai no Bar do Pinto, na Rua da Passagem. Escolhi a Portela simplesmente porque a escola ensaiava no Mourisco, pertinho da minha casa.
          Naquele tempo, quem era Botafogo era Portela , quem era Flamengo era Mangueira, quem era Vasco era Império e quem era Fluminense... bem, quem era Fluminense não gostava de samba, pelo menos até o filho do ex-presidente Figueiredo levar alguns jogadores a Nilópolis e ensinar que os tricolores podiam torcer para a Beija Flor. Talvez por isso a Beija-Flor, como o Fluminense, ganhe tantos títulos, enquanto a Portela está há 21 anos na fila.
          Mas não é isso - a espera - o que me seduz. Ao contrário do que querem fazer crer os sadomasoquistas alvinegros, é da glória - e não do sofrimento - que se alimenta a paixão. Por isso, só depois das vitórias é que me interessei pelo resto da história: a malandragem viva de Paulo da Portela, os sambas do Casquinha, a galinha com quiabo da Surica, os dribles do Garrincha, as mandingas do Carlito Rocha, o cabelo gomalinado do Heleno. O Botafogo sempre foi para mim uma escola de futebol, um lugar em que aprendíamos a gostar daquele jogo. Como a Portela, a tradução literal de escola de samba. E foi o que se provou na última segunda-feira, quando a águia apareceu na avenida fantasiada de coruja.
          Num carnaval cada vez mais tomado por encenações, em que os sambistas dão lugar a atores, nada mais natural que a águia cedesse seu lugar a outro pássaro. Um papel. Foi exatamente o que explicou a jurada de alegorias e adereços, Ana Bernachi, que cravou 9,2 para a escola de Madureira, mesmo com a águia passando depenada diante de seus olhos: ''Aquilo podia ser uma visão do carnavalesco''. E era. Ana demonstrou ser a única a antever o caráter futurista do desfile da Portela. Numa metáfora sobre a degradação e o renascimento do mundo, a jurada percebeu que a águia-coruja sempre renasce da quarta-feira de cinzas. A Portela, como o Botafogo, não pode perder. Pra ninguém.
          E que venha o Americano!!

          Então quer dizer que transmitir o carnaval bancado pelos bicheiros para o mundo inteiro pode. Governos estaduais financiarem carnaval comandado pelo jogo do bicho também pode. Fazer acordos com entidade (Liesa) administrada por um punhado de ex-condenados por contravenção também é legal. Transformar um bicheiro no personagem mais simpático da novela campeã de audiência é mais legal ainda. Mas botar foto de bicheiro na avenida é uma vergonha, né? Então tá bom.

Renato Lemos
(Publicado originalmemte no Jornal do Brasil em 13 de fevereiro de 2005)

 

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