A "descarnavalização" na mídia

            Tríduo momesco era o nome engravatado, pernóstico. Tornou-se impróprio – os três dias esticaram-se para quatro, cinco ou até sete. Além disso, ninguém sabe pronunciar direito, nem o que significa. Momo caiu em desuso e folia virou sinônimo de viagens ao exterior ou monumentais engarrafamentos de trânsito.
          Carnaval tinha máscaras, fantasias, confete, malícia. Um par de coxas entrevistas debaixo das saias rodadas provocava delírios. Hoje, com tanta bunda e peitos em oferta, foi-se embora a sensualidade, perdeu a graça. A escala torna tudo muito chato. O lança-perfume tinha algo de misterioso, um jatinho nas costas da(o) pretendida(o) insinuava muita coisa; foi trocado pela mensagem direta do crack, do ecstasy e da coca.
          O que é um bloco, um rancho, um desfile de carros alegóricos com críticas aos poderosos? Os enredos das escolas de samba são todos comprados, quase sempre por poderosos interesses políticos, e os camarotes compartilhados por poderosos interesses econômicos. Um dos mais belos folguedos populares do mundo foi transformado no show-room da contravenção e da corrupção. Falta apenas a adesão de alguma seita neo-evangélica para transformar-se no retrato da impunidade.
          Na Bahia, no Recife, em alguns recantos do Nordeste e do Rio, o Carnaval ainda tem algo de autêntico. Conservou um pouco da alegria original, a gozação, a musicalidade, a animação, expansividade, brejeirice. O que rola nos sambódromos – a genial invenção do antropólogo Darcy Ribeiro para glorificar a enganação – de popular tem pouco.
          A idéia da apoteose no desfile das escolas de samba agravou a encarniçada disputa pelos prêmios e liquidou a socialização da alegria, da espontaneidade e criatividade. A manchete do Globo no domingo, 6/2 ("Relatório da Liga mostra contradições de jurados – justificativas de votos revelam falhas no julgamento das escolas em 2004"), expõe cruamente a metamorfose da antiga malandragem artesanal em trambicagem industrial.
          A mídia é o espelho da descarnavalização do carnaval. É a causa e efeito. A eletrônica injetou-lhe doses maciças de showbiz com apenas alguns dos seus atributos, mas todos os seus efeitos perversos — o close-up, o branqueamento, o vedetismo, a comercialização e o fim do espírito satírico.

Terrível sucedâneo

          A transformação dos semanários em publicações de auto-ajuda acabou com uma fascinante disputa federal entre O Cruzeiro e Manchete para mostrar quem cobria mais bailes, quem descobria as mais deslumbrantes desconhecidas e os foliões mascarados. Vendiam-se centenas de milhares de exemplares, em edições normais e especiais. Com apenas um Carnaval devidamente colorido as empresas saíam do vermelho e voltavam ao azul.
          O fenômeno mais interessante é o desaparecimento nas redações dos catedráticos do samba e das tradições populares. Cada redação tinha os seus (espalhados nas diversas editorias, mas convocados a partir de janeiro para a missão especial). Nem todos boêmios, a maioria engravatada, mas capazes de cantar as marchinhas de 20 anos atrás, citar enredos, nomear os mais famosos mestres-salas e garbosas porta-bandeiras.
          Esses carnavalescos eram os escudeiros das tradições, memória e pauta. Jornal e Carnaval andavam juntos e todos ganhavam, sobretudo os leitores. Ficou tudo reduzido à questão da escala e dos plantões, quem trabalha e quem folga, quem cobre os camarotes e quem faz a corrida dos hospitais ou estradas.
          A tal marcha do tempo e o irresistível impulso do progresso criaram um terrível sucedâneo da folia: indiferença.

Alberto Dines
(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa em 08 de fevereiro de 2005)

 

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