Os excluídos da comissão de frente
            Em novo livro, o pesquisador Felipe Ferreira acerta o passo ao mostrar como o carnaval deixou de ser uma festa com formato específico, tornando-se junção de tradições, influências e ritmos populares, mas da qual o povo foi alijado.
          Quando buscamos saber sobre as origens e dos significados do carnaval brasileiro, experimentamos a mesma sensação confusa de Sinhô, que, questionado a respeito da questão autoral dos sambas, filosofou: ‘Samba é igual passarinho, é de quem pegar primeiro.’ Porque não são apenas os historiadores, sociólogos, antropólogos, musicólogos que multiplicam suas pesquisas e interpretações, mas também os milhares de atores da própria festa carnavalesca. Como o futebol, ninguém passa por perto sem dar seu palpite inteligente. Quem já não ouviu um samba que conta a história completa do carnaval, da Festa de Ísis aos bailes mascarados de Veneza, terminando, obviamente, com a referência final à sua própria escola? Atento tanto aos intérpretes quanto aos atores, Felipe Ferreira realiza, em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, uma das mais completas sínteses de um tema sobre o qual, a cada ano que passa, se acrescenta mais confusão.
          Começando pelas celebrações dos povos antigos, como babilônicos ou egípcios e chegando às home pages das escolas de samba, o autor leva a vantagem de, logo de saída, definir o carnaval brasileiro como ‘um produto de diversos discursos que, ao longo dos últimos 150 anos, vem sendo lentamente elaborado através de variadas disputas de poder’. Mas, logo depois - felizmente - passa longe de definições abstratas: tem muitas fotografias e caricaturas, receita de limão-de-cheiro (um projétil de água colorida que os foliões lançavam na época do ‘entrudo’), histórias curiosas de fantasias e adereços, explicação de como surgiram as alas das escolas carnavalescas, cronologia marcando o ano da introdução do confete, do primeiro desfile do Rei Momo, etc.
          Mas quem espera por uma história evolutiva do carnaval brasileiro, vai se decepcionar. Porque como toda história de manifestações populares, ela está mais para uma narrativa do tipo ‘samba do crioulo doido’, do que para enredos bem-comportados e arrumadinhos. É uma história de infinitas fusões, trocas, apropriações, empréstimos, influências, reciclagens - na qual, a única definição verdadeira e consensual é que o carnaval é uma festa de calendário, e uma festa do calendário católico. No rigor do calendário, os dias de fartura e excessos, primitivamente designados como de ‘carnevale’ (adeus à carne) precediam os de penúria e orações: a Quaresma - instituída pelo papa Gregório I em 604 e inspirada nos sofridos dias de jejum de Cristo no deserto, antes da pregação apostólica. Assim, a terça-feira carnavalesca só varia conforme a data da Páscoa, que ocorre sempre no domingo seguinte à primeira lua cheia após o equinócio de março.
          Fora dessas certezas, o carnaval é um grande palco onde, no decorrer de uma longa história, aconteceu de tudo. Entraram e saíram os mais diversos atores e brincadeiras, algumas transformadas em verdadeiras batalhas entre classes: o primitivo entrudo e os zés-pereiras; as festas de congos, cucumbis, frevos e maracatus; os bailes de fantasias e os corsos; as sociedades carnavalescas e os cordões, ranchos e blocos - enfim, cada uma dessas modalidades lúdicas cruzando sua própria história com as demais e resultando no carnaval brasileiro, espécie de bolo saboroso do qual é difícil perceber a receita original. Como se costuma dizer, não há essências atrás das aparências. A figura do malandro, tida como originalidade típica do carnaval brasileiro? Não totalmente, pois inspirada nos zooties norte-americanos e mundialmente popularizada pelo cantor Cab Calloway nos anos 40. Fantasia de índio sempre foi a mais comum - até porque era a mais barata. Popularizou-se tanto que, em 1909, a polícia carioca proibiu o uso de ‘fantasias de índio’ no carnaval, alegando que os adereços escondiam armas e recomendando apenas ‘corsos elegantes com pierrôs e colombinas’. Mas a fantasia de índio foi uma invenção européia, pouco relacionada com o habitante original do Brasil. Até a idéia de que o carnaval é uma festa de marketing, atraindo turistas, deixou de ser nova, como se percebe pelo revelador discurso de Berilo Neves, diretor de festejos no carnaval carioca, no longínquo ano de 1932.
          Já o carnaval como sinônimo do peculiar arranjo social brasileiro e da singular vitória da miscigenação da raça - que fez, do Brasil, um exemplar único de carisma multicultural para o mundo - foi tese abraçada por diversos estudiosos. Mas, como não perceber a mesma tese por trás dos versos da marchinha Grau Dez, de Lamartine e Ary Barroso, sucesso do carnaval de 1935? Nela, todos os povos se colocam aos pés da mulata, transmutada em grande ícone nacional: ‘O inglês diz yes, my baby/ O alemão diz Yá, corração/ o francês diz bonjour, mon amour/Très bien, très bien, très bien/ o argentino, ao te ver tão bonita/Toca um tango e só diz: milonguita/ o chinês... diz que diz, mas não diz/Pede bis, pede bis, pede bis.’
          Ainda hoje, quando vemos o carnaval pela TV, não conseguimos aquele mínimo efeito de distanciamento, essencial para, ao menos, ensaiarmos a organização da nossa desordem interpretativa. Nesse ponto, o livro também acerta o passo, por mostrar, com grande número de detalhes, quanto o carnaval deixou de ser uma festa com formato específico, transformando-se numa junção desordenada de diversas festas, tradições, comportamentos, performances, costumes e ritmos populares. Tanto melhor. Mas, concluir daí que o carnaval seria a síntese do Brasil é voltar ao mar-sem-fundo ou ao famoso dilema de Sinhô - que, no fundo, queria dizer que o samba, tanto quanto o carnaval, sofre de excessos de palpites, ou da doença da superinterpretação. De qualquer forma, parece curioso o destino de um país que fundamenta sua síntese cultural num momento efêmero, mas intenso, forte, embalado na comunhão do ritmo que impera soberano, diluindo o contraste das histórias, a divergência de significados e aplainando as diferenças sociais. Não foi por acaso que Roger Bastide viu nas vibrações dos bumbos carnavalescos uma variação do êxtase religioso. É o ‘Bum bum Paticumbum Prugurundum’ que assinala a vitória cabal do ritmo sobre o enredo. Esquecemos de tudo aquilo que nos oprime - até o fato de estarmos um tanto desafinados, excluídos da comissão de frente, fora do enredo. Não propriamente do samba-enredo, mas daquele outro enredo principal, a narrativa maior da história do País.

Elias Thomé Saliba
(Elias Thomé Saliba é historiador, autor de Raízes do Riso)
(Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 6 de fevereiro de 2005)

 

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