‘Quem não chora não mama’
 
          É preciso ser muito animado para estar no centro da cidade do Rio, às 10h da manhã de sábado de Carnaval, para sair no Cordão do Bola Preta. Pois duas horas antes a Cinelândia já fervia, com milhares de pessoas concentradas esperando a saída do bloco.
          O público era diferente do que costuma aparecer nas revistas e na televisão. Aparentemente, nenhum dos foliões - porque esses são os verdadeiros foliões - jamais passou pela porta de uma academia de ginástica. As barriguinhas eram visíveis e ninguém estava nem aí.

          A criatividade popular é infinita. As fantasias não eram nada, praticamente: uma fitinha na cabeça com o nome do bloco, uma peruca de ráfia, um homem de minissaia e batom, outros de touca de bebê e chupeta na boca, tudo simplesinho, todos com uma latinha de cerveja na mão - isso às 9h da manhã. No ar, um aroma embriagante de churrasquinho de gato.
          Mas o que tem o Bola Preta para ser, há 86 anos, o bloco mais animado do Rio?
          Talvez a alegria e a espontaneidade do bloco tenham a ver com a liberdade; o Bola Preta não tem patrocínio, não obriga os carnavalescos a usar a mesma camiseta, ninguém pretende se exibir para arrasar na imprensa, ninguém faz lipo nem põe silicone para o Carnaval, as músicas são aquelas antigas que todo mundo conhece, e não é preciso ter boas relações para ganhar uma credencial e ter o direito de se divertir. O Bola Preta é a verdadeira democracia.
          Ao primeiro repique da bateria, a multidão espocou cerveja na avenida como se fosse champanhe, e cantou o hino do bloco: ‘Quem não chora não mama, segura meu bem, a chupeta’. Foi um delírio: além de sambar, estavam todos rindo, felizes, como se não tivessem um só problema na vida. A idade média era 60 anos - mas havia também crianças de colo - e a renda per capita não devia passar de uns R$ 800,00. As caras, os corpos não sarados, o total descompromisso com a exibição para os fotógrafos, davam a impressão de estarmos diante de um grande painel de A vida como ela é -ou como deveria ser.
          O comércio informal de camisinhas faturou alto - claro; depois de um momento tão cívico - com todo o respeito - ninguém costuma voltar para casa sozinho. Porque todo mundo sabe que ‘lugar quente é na cama e no Cordão do Bola Preta’.

Danuza Leão
(Publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo em 6 de fevereiro de 2005)

 

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