Arte-Folia

 
          Pensar esteticamente, para a filósofa Eva Schaper, é pensar sobre a ficção e sobre o "como se fosse". Este pensamento determina o ser das obras de arte e por extensão achamos por bem incluir a festa do carnaval.
          A principal característica do carnaval é a presença de diversos grupos de pessoas que, com a intenção de diversão e exibição, se valem dos recursos audio-visuais diferentes daqueles usados no cotidiano. A intenção é provocar e até estimular os sentidos não só da audição mas sobretudo da visão. A beleza, a feiura, o luxuoso, o grotesco, o monstruoso, o engraçado e o original estão lado a lado de instrumentos musicais, que, com sons, ora graves ora agudos, em ritmos lentos ou rápidos, tentam também impressionar a audiência, despertando nela o sentimento do estético.
          Dentre as manifestações de rua, do Rio de Janeiro moderno, destacamos o desfile das Escolas de Samba no Sambódromo, por ser o objeto que vem despertando maior atenção e curiosidade do público em geral. Várias têm sido as indagações levantadas a respeito das causas deste sucesso, principalmente no que se refere às transformações pelas quais as Escolas vêm passando anualmente. Podemos muito bem perguntar se um dos fatores deste sucesso não se deve ao fato de a Escola se Samba mostrar na avenida um trabalho pleno de aspectos interessantes, do ponto de vista da percepção, em seus famosos quesitos, e de privilegiar a beleza e a harmonia?
          Lembrando Arthur Danto, a cidade quebra sua ordem e instala a "transfiguração do lugar comum", utilizando ruas, praças e avenidas como imensos palcos ao ar livre. Carros, ônibus e táxis desviam seus roteiros e abrem alas para deixar falar o sonho, a ilusão, as aspirações e as esperanças, através de estórias, que o povo quer publicamente contar. Do fundo dos inconscientes e da imaginação surgem as mais diversas formas de anjos, demônios, ídolos, sereias, rainhas, reis, príncipes, princesas e heróis.
          Em contraste com o caos do carnaval, o desfile das Escolas de Samba é o resultado de muita organização e disciplina. É um sistema de ordem em cuja estrutura estão amalgamadas diferentes atividades artísticas dando forma a esta nova arte feita de escola de samba e folia.
          São centenas de profissionais que durante um ano inteiro se unem para produzirem aquela beleza que irá emocionar a todos que tiverem o prazer e o privilégio de assistir in loco aos desfiles. Confirma o mestre Paulo Miranda da Portela, o Paulinho da Harmonia: "Há que se ter uma grande disciplina para transformar em realidade o sonho que é uma Escola de Samba no domingo de carnaval. Disciplina que nos garante na vida comum no dia-a-dia, a aquisição de um status decente e promissor".
          Deixando de ser rua ou avenida por apenas uma semana, a Marquês de Sapucaí transforma-se em significativo espaço onde acontece uma exposição de desejos. Surge assim uma nova forma de arte: é a Arte-Folia que faz deste lugar seu corpo, vestindo-o com cores e sons. Seu objetivo é cantar sonhos, fantasias e ilusões, ao ritmo de símbolos e no embalo da percussão de metáforas.
          A novidade é justamente o aparecimento de uma arte-escola, que ensina o movimento de sambar e "gingar" o corpo. Com eloqüência, ela usa os pés para dizer desenhos, abstrações e arabescos que se dissolvem no ar como as bolas de sabão, fixando-se porém nas milhares de retinas irrigadas de espanto e prazer. O suporte desta arte não é a palavra, não é o barro, o papel, o celulóide, nem tampouco o metal, a pedra, a madeira ou a tela. O suporte desta nova arte nascida no século vinte é o próprio ser humano. É uma arte transeunte no corpo vivo, deste ser folião, que irá se desfazer também na transitoriedade de primaveras, invernos e verões.
          Ao olhar a Escola de Samba em desfile de carnaval, não a vemos somente por seu visual; vemos, sobretudo, o que ela significa dentro da epistemologia como um campo de conhecimento que inegavelmente ela é. Sua complexidade, impossível de ser definida, envolve o simbólico, o imaginário e o real, lançando um forte desafio à percepção e à faculdade do entendimento, na ânsia de refletir, para interpretar tudo que vemos, ouvimos e sentimos em nossa emoção. Para compreendermos esta realidade, precisamos antes de mais nada abstermo-nos de ter um olhar ingênuo, para, em seguida, desmontá-la com a ferramenta da linguagem, na criação de seu conceito. A exposição dos sambistas, que dançam o jogo da sedução com graça, ritmo, elegância e provocação, é, sim, uma obra de arte, na maneira à brasileira de ver, ouvir e julgar a estética do movimento na beleza das formas do corpo.
          A Escola de Samba como arte vem desafiando os teóricos e acadêmicos do século vinte. Ela canta e dança estórias da história, de seu povo. É uma arte transeunte no corpo vivo não representado, folião e transitório, que busca, em minutos, a beleza do ato de viver e ser. O corpo humano é assim dessacralizado e exaltado enquanto humano, apresentando plena e orgulhosamente sua natureza, num instante fugidio de sua existência mortal. As esculturas "vivas", mostradas no desfile das Escolas de Samba, instauram o profano, o natural, o humano, apenas humano. A corporeidade reina em seu reino instantâneo, onde a eternidade é a eternização, simulada em um momento; é eternidade em Arte-feita-Folia e Folia-feita-Arte. Apoiada no "como se fosse" da ficção e no "vale tudo" de um momento fugaz, o desejo abre as portas da liberdade para atingir a plenitude de ser. Anjos e demônios se desprendem da turbulência dos inconscientes para viver o fascínio do mundo do possível. É cobrir o corpo com e de fantasias para descobrir "quem sou". Sem uma coreografia previamente estudada e estabelecida, os sambistas improvisam, à exemplo dos jazz-men quando inventam sons de seus instrumentos musicais. O mesmo acontece com a bateria do samba. Este "saber-fazer" é uma folia, festa de alegria, para brincar em tempo de vida, fora dos limites do carnaval e do exercício do desfile.
          A complexidade de uma Escola de Samba perturba nossa maneira de pensar e refletir (na formulação de conceitos), assim como as novas formas de arte, que aparecem desafiando e desafinando o já assimilado e aceito socialmente. Vimos, através da história, que isto aconteceu com a arte impressionista, com o dadaísmo, com a fotografia e com o cinema, por exemplo.
          Dentre as várias características que qualificam uma Escola de Samba, destaca-se seu alto poder de mutação. Cada ano ela se renova para apresentar-se diferente, expondo-se somente uma vez ao público e em apenas noventa minutos de exposição. Esta metamorfose a faz um objeto único e peculiar, sem parâmetros nem antecedentes que possam servir de orientação para seu julgamento e classificação. Os sambistas reinventam a história do Brasil. Eles demonstram grande capacidade criativa ao contar um mesmo episódio histórico de várias maneiras, em estilos e estéticas diferentes, sempre buscando formas de originalidade e interesse.
          Os aspectos de subjetividade, de objetividade, do imaginário e do simbólico estão intimamente relacionados com as características de efemeridade, temporalidade e transitoriedade, através de uma intensa variedade de informações. Estas informações devem ser captadas pelos olhos, pelos ouvidos e pela mente, num curto espaço de tempo, constituindo assim um forte desafio à nossa capacidade de perceber.
          Por deter a marca da competência, hoje, a Escola de Samba é uma indústria que faz inveja a muitos empresários, empregando uma técnica qualificada de alto nível e de grande inventividade.
          Em um programa de televisão, Paulinho da Portela declarou: "O desfile é uma caixa de segredos, é um fenômeno que ninguém até hoje conseguiu desvendar".
          O desfile é como um suspiro de vida em meio às horas de trabalho e compromissos de relógios, leis e calendários; rompe os horários convencionais, e estabelece regras e regulamentos num contraponto ao seu aspecto de transitoriedade. Cria a noite para não dormir, num reveillon onde vemos e ouvimos sonhos serem realizados. Nem os Incas, com toda sua glória, jamais se vestiram como as alegorias e os destaques que saúdam e adornam o nascer do sol nas madrugadas do Sambódromo. Imitando o universo das estrelas, a Sapucaí cintila em meio a cometas, astros e asteróides, quando milhares de seres terrestres fazem de suas cordas vocais algo mais do que o uso prático da fala prosaica no diapasão do trivial. Pernas, mãos, cabeças e corpos transgridem as leis do ir e vir, entrando numa nova ordem de balanço, banhados pelo sereno de suores e brilhos, de ritmos e risos.
          Aproveitando este tempo de acordar o sonho que é o do carnaval, o Brasil inventa seu reinado com tudo a que tem direito: símbolos, metáforas, bandeiras, brasões, coroas, cetros, tronos, legendas e monarcas. Encubados durante trezentos e sessenta dias, os foliões esperam por este momento de glória, para viverem em plenitude suas fantasias palacianas.
          No binômio Escola de Samba, os aspectos do racional e do emocional entram em harmonia, embora contrastem entre si. O termo Escola envolve educação, racionalidade, enquanto o termo Samba tem ligação com a arte e a emoção. Arte e Samba, assim como Escola e Educação, apresentam semelhanças em suas implicações conceituais, apesar de pertencerem a campos ideologicamente diversos. Ana Mae Barbosa sintetiza bem esta dialética: "A educação, como meio de conservação da cultura, é naturalmente estratificadora e conformista, enquanto a arte, como instrumento de renovação cultural, é anticonformista, e, portanto, de caráter demolidor." É possível conjecturar que a diferença apresentada entre conservação e renovação possa ser uma das explicações para a polêmica que tem existido nas discussões sobre manutenção de raízes e a introdução da modernidade nas Escolas de Samba.
          Podemos ver na Arte-Folia das Escolas de Samba um reflexo das idéias expressas por Mondrian, pelos Minimalistas e pela Arte Conceitual no que diz respeito à arte ser concebida pela mente antes de sua construção. A mente deve impor sua ordem racional às coisas e aos objetos externos a ela. Sendo assim, o ponto de partida da Arte-Folia é a concepção de um tema. Em seguida, são feitos os desenhos e destes saem os objetos para a terceira dimensão. O comando dos sons da bateria é integrado à poesia do canto e ao movimento da dança e dos objetos alegóricos compondo assim a tese que será defendida na competição da festa do desfile.
          O conceito de Arte-Folia tem uma relação direta com o corpo humano. A Arte-Folia não o representa, pois ela é o próprio ser em demonstração de vitalidade, ritmo, vibração, beleza e entusiasmo, no sentido grego do termo.
          É interessante notar que nunca dizemos que somos um corpo, e sim que possuímos um corpo. Empregando o verbo ter, ao invés de ser, colocamos o corpo como uma coisa à parte, de posse: meu corpo. Esta referência faz o corpo ser também um produto da linguagem. A palavra corpo refere-se à porção distinta da matéria física que nos causa impressão através dos sentidos. Ao mesmo tempo o corpo é constituído, ele mesmo, do ato de sentir. A visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar são canais por onde entra a percepção do mundo. A língua cria a palavra "Eu" e dá nome a tudo que existe.
          A relação entre o "Eu" e o corpo se estabelece primeiro na mente, depois através da fala, (pelo comando da fala que pensa e fala sobre o corpo). Estamos paradoxalmente juntos e ao mesmo tempo separados do nosso corpo.
          A visão de um corpo humano despido tem sido sempre motivo não só de curiosidade mas acima de tudo de prazer. Nu ou vestido, sua representação constitui uma forma de cultura e inclui valores estéticos, éticos, sociais e religiosos. A importância que damos à imagem do corpo está registrada ao longo de nossa história.
          Desde as mais remotas culturas, os babilônios, os assírios, os persas, os gregos e os romanos já tentavam eternizar a imagem do nosso corpo em esculturas de pedra, mármore e bronze. Artistas de todas as épocas têm buscado nele inspiração.
          Falar sobre Arte-Folia é falar sobre o corpo humano. Esta arte comunica arte-vida e sua perenidade. Suas características de temporalidade, efemeridade e transitoriedade estão em íntima combinação com os mundos da subjetividade, da objetividade e dos símbolos, gerando assim uma grande complexidade para aqueles que tentam entendê-la. Distinguindo-se das conhecidas artes de representação, o conceito de Arte-Folia não faz referência a um movimento tal como por exemplo o do Impressionismo. Ele diz respeito a uma forma que está à margem dos limites convencionais das artes consagradas pela filosofia, pela crítica e pela história da arte. Ela é um audiovisual ao vivo, um objeto multi-facetado e que se apresenta em cortejo de competição nas condições especiais de desfile em tempo de carnaval. Com a característica de arte coletiva, ela envolve a interação de pessoas com pessoas, e de pessoas com objetos, numa exaltação à vida, à alegria e ao entusiasmo. O corpo proclama sua natureza profana e declara sua humanidade ao mesmo tempo que demonstra a ausência de culpas e pecados. Vitória de Eros sobre Thanatos. Nestes momentos, a entropia, a morte e o envelhecimento perdem pontos, metamorfoseando-se em prazer e poesia. O natural e o artificial se entrelaçam para dimensionar o absoluto e a eternidade do ser, em instantes de verdade e beleza vividos no aqui e agora.
          O conceito de arte tem mudado através dos tempos, seguindo o fluxo do desenvolvimento da consciência a respeito de si mesmo e do seu meio ambiente.
          Definir o que é uma obra de arte tem levado filósofos e artistas a intermináveis exercícios discursivos, os quais cada vez mais se tornam complexos. Em História da Arte Educação, Robert Saunders nos lembra que: "a arte é um fenômeno cultural, inventada há milhões de anos, a fim de satisfazer algumas de nossas necessidades. Como as necessidades humanas mudam através dos séculos, também mudam os objetivos da arte." O artista Naum Gabo completa este pensamento: "a arte nasce da necessidade de comunicar e informar." O filósofo Nelson Goodman conclui: "objetos de arte são mensagens portadoras de fatos, pensamentos, sonhos, idéias e sentimentos. A arte depende da sociedade e ajuda a sustentá-la como um corpo."
          A tendência das obras de arte na contemporaneidade é voltar-se mais para funções e performances do que para a feitura de objetos; isto ficou bem demonstrado na XXIII Bienal de São Paulo. A proposta destas artes é produzir um ambiente de emoção, com o fim de despertar a atitude estética dos espectadores. Uma vez desligada a catarsis, a obra de arte deixa de existir. Ao completar seu objetivo, a obra de arte desaparece. É neste sentido que a Arte-Folia vai partilhar suas características com algumas artes do século vinte: Happenings, Instalações, Arte-Ambiente, Arte-Performance, Interferências.
          As Escolas de Samba, em apenas noventa minutos, com seus estímulos estéticos, lançam um forte desafio à nossa capacidade subjetiva de fazer julgamentos da ordem da estética. O belo está nos olhos de quem vê, diz um velho ditado, sendo assim, este tipo de julgamento, devido ao seu caráter subjetivo, jamais contentará a todos. Porém, ele possui um mérito: o de contribuir para o enriquecimento do vocabulário e conseqüentemente para o desenvolvimento da linguagem. Quando a classificação do desfile é conhecida, o Brasil inteiro, de norte a sul, comenta e discute o resultado e as notas dadas pelos jurados. Os contentes e os descontentes procuram todos os adjetivos para defender ou contra-atacar as cinco primeiras colocadas.
          Para se sagrar campeã do desfile, é preciso alcançar a nota máxima nos dez quesitos: Enredo, Samba-Enredo, Bateria, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Fantasia, Alegoria, Comissão de Frente, Evolução, Conjunto e Harmonia. O tema do enredo deve estar perfeitamente integrado aos quesitos, sobretudo no que diz respeito à Evolução, ao Conjunto e à Harmonia.
          Um dos mais respeitados artistas da Arte-Pop surgida nos Estados Unidos da América do Norte, o inglês Richard Hamilton, enumera as qualidades que ele considera ideais para que uma obra de arte possa pertencer à atualidade: transitoriedade, popularidade, sensualidade, humor, glamour, esperteza, jovialidade, produto de massa, e alta rentabilidade financeira. A Arte-Folia das Escolas de Samba, por incrível que pareça, neste sentido, nada fica a dever à aspiração de Richard Hamilton, possuindo em abundância todas as qualidades por ele mencionadas.

Referências Bibliográficas:

  • SCHAPER, Eva - Studies in Kant's Aesthetics. University Press Edinburgh, Scotland, U.K., 1979, p. 118.

  • DANTO, Arthur - The Transfiguration of the Common Place - A Philosophy of Art. Harvard University Press, 1981.

  • OLIVEIRA, Nilza de - Quaesitu - O que é Escola de Samba? Imprensa da Cidade - Prefeitura do Rio de Janeiro, 1966, p. 16, 18, 59, 73.

  • MIRANDA, Paulo - Em: Fala Crioulo de Haroldo Costa. Rio de Janeiro, Ed. Record 1982, p. 201.

  • BARBOSA, Ana Mae - Teoria e Prática da Educação Artística. São Paulo, Ed. Cultrix, 1975, p. 11.

  • SAUNDERS, Robert - Fazer Arte Faz uma Diferença no Mundo. Trad. Nilza de Oliveira, em História da Arte-Educação. Ed. Max-Limonade, 1986, p. 61.

  • GABO, Naun - The Constructive on Art. New Jersey, Ed. Robert L.H. , 1964.

  • GOODMAN, Nelson - Languages of Art. Oxford University, U.K. 1969, pp. 246/247.

  • RICHARDS, Hamilton - Pop Art in Concepts of Modern Art. Londres

Nilza de Oliveira
(autora do livro "Quaesitu: o que eh escola de samba")

 

Artigos