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Se
época há na qual muito não caiba tematizar a moral, é justamente aquela
destinada à euforia do Carnaval. É nesse período que mais se permitem
certas licenciosidades. O que, talvez, crie algum tipo de embaraço seja
o fato de nem sempre ficar claro o que é licenciosidade moral e o que
é transgressão ética. Sabe-se que a fixação de uma fronteira rígida entre
ética e moral demandaria esforço analítico maior que as pretensões do
presente artigo. Todavia, para não se deixar totalmente órfão o pensar
sobre a questão, vale timidamente equacionar um mínimo de conceituação.
A moral se
refere ao campo do comportamento e costumes, sujeito, portanto, a flexibilizações
e mutações no tempo e no espaço; a ética se destina a dar conta do elenco
de princípios com que se molda um caráter, seja individual, seja social.
Essa básica diferença possibilita compreenderem-se certos procedimentos
adotados pela mídia no mais recente e findo reinado de Momo. Para tanto,
vamos destacar as relações entre a Rede Globo e o desfile das escolas
de samba, particularmente no Rio de Janeiro.
Monopólio e outros detalhes
Para
iniciar o que aqui pretendo criticamente sinalizar já serviria pôr em
discussão a validade ética a respeito do direito a transmissões exclusivas
num país no qual, pela legislação vigente, as emissoras são uma concessão
pública. Moralmente o fato em si nada contém de perturbador. Afinal de
contas, alguém, por contrato, compra algo que outrem oferece. Juridicamente,
também nada a obstar. É um regime capitalista e, como tal, o princípio
de compra e venda está previsto e referendado. O problema, entretanto,
por um viés ético, surge quando à lembrança vem o fato de ser o desfile
uma expressão da espontaneidade popular, a despeito das regras e evoluções
marcadas que a legião de alas tenha de cumprir.
Até onde se
sabe, os desfilantes não são profissionais pagos por esse ou aquele. São
cidadãos de comunidade, turistas e interessados em daquele momento participar.
Pelo contrário, além de nada receberem, ainda pagam e caro. Enfim, pelo
menos em tese, desfilantes não são contratados nem da escola e, menos
ainda, de qualquer rede de televisão.
A argumentação
proposta serve para deixar claro que o problema maior não reside no monopólio,
e sim na natureza do "objeto". A exclusividade, por exemplo,
da transmissão de uma Copa do Mundo já tem outras implicações. Nesse evento,
todos são profissionais e, pelos seus contratos, em meio a inúmeras cláusulas,
promovem-se acordos. No caso dos desfiles, volto a enfatizar, o perfil
é bem outro. Contudo, algo de muito mais grave ocorreu no desfile e, salvo
um olhar equivocado deste espectador, nenhum registro na imprensa foi
dado em tom de crítica.
O fato não
é outro senão indagar que direito tem uma rede de televisão, pelo simples
direito à transmissão exclusiva, de escolher uma dada agremiação e nela
inserir o enredo de novela que está no ar. Por favor, antes que alguém
venha com a história de que novela e realidade se cruzam, é bom lembrar
que - aí entra a questão ética - infelizmente o desfile é uma competição
a envolver prêmios e prestígio maiores aos vitoriosos. Este aspecto torna
inviável e indefensável a possível contra-argumentação.
É óbvio que
vários filmes já foram exibidos nos quais filmagens de desfile se fazem
presentes. Também isto nada tem a ver com o problema apontado. Quando
o filme é exibido, aquele desfile já pertence ao passado e, por conseguinte,
nenhuma influência exerce sobre o julgamento. Será que, no caso da relação
entre desfile e novela, igual isenção haverá?
Infelizmente,
parece caber a este articulista a tarefa que deveria ser de quem profissionalmente
se assina como crítico de TV, a menos que - o que será ainda mais grave
- nenhum crítico de TV perceba nisso problema. Que respondam os críticos.
Todavia, antes de qualquer suposta resposta, nenhuma retirará o manto
de um delito ético, simplesmente porque é um delito cujo apagamento não
se dá por argumentação. O quadro fica ainda mais eticamente agravado quando
outra agremiação é levada a exibir-se - o que já ocorreu em anos anteriores
- no Big Brother Brasil.
Muito a aprender
Mais
estranho ainda é a carnavalesca de uma das agremiações ser contratada
da Globo News. Bem, sem ilações indevidas, o fato é que, coincidentemente,
nas quatro primeiras colocações, três mantêm laços com a Rede Globo. Beija-Flor,
Grande Rio e Imperatriz Leopoldinense obtiveram, respectivamente, os 1°,
3° e 4° lugares. Como a rede de coincidências ainda não esgotou, atente-se
para o detalhe: a agremiação a integrar a novela Senhora do Destino conquistou,
na ficção, a mesma colocação da escola de samba que, na realidade, desfilou.
Não é a glória? De quem? Como mera ilustração, vale reproduzir um dado
jornalístico. Na seção "Televisão", no caderno "Ilustrada"
(Folha de S. Paulo, 11/2/05), assinada por Daniel Castro, constava a seguinte
matéria:
Frase - De
Aguinaldo Silva, sobre a coincidência de a Grande Rio, escola que cedeu
seu desfile à Unidos de Vila São Miguel, de "Senhora do Destino",
levar o mesmo terceiro lugar da agremiação fictícia: "Essa novela
é abençoada. Tudo dá certo". Silva escreveu que a São Miguel ficaria
em terceiro muito antes do Carnaval.
De pronto,
esclareça-se que nenhuma alusão desabona a criação ficcional do autor
da novela. Seguramente, seu depoimento é verdadeiro. O problema ético
decorre da decisão que outras esferas tomam, ignorando contaminações que
favorecem (ou podem favorecer) desvios de conduta. Em princípio, ninguém
está errado. Todavia, o ideal e, eticamente correto, seria não haver monopólio
de exibição e, em havendo, nenhuma relação direta com o espetáculo que
envolve tantas vidas (muitas delas sofridas e repletas de vicissitudes).
O fato de
pagar a exclusividade de uma transmissão de uma festa pública não confere
direito a relações que correm o risco de serem promíscuas. Como se vê,
o Brasil ainda tem muito a aprender com o que seja a prática da democracia
cujo profundo sentido não consiste em digitar um número numa maquininha
em dias e horários definidos.
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