O intragável desfile pela TV
 

          Difícil escrever numa quarta-feira de cinzas sobre algum assunto que não seja Carnaval. Mas escrever o quê sobre uma festa que está cada vez mais limitada ao que acontece na Marquês de Sapucaí? Como o próprio narrador do desfile apregoou várias vezes “vem aí a Beija-Flor para fechar o carnaval 2005”. Ou seja, para a Globo o Carnaval acaba na terça de manhã. Ou o Carnaval termina quando acaba o desfile das escolas de samba que ela transmite com exclusividade.
          A festa que deveria ser popular a cada ano vai se perdendo num desfile de celebridades globais que, não satisfeitas de ocupar a tela da TV o ano inteiro ainda vêm ocupar o único espaço que deveria pertencer aos sambistas de verdade. O público limita-se a observar passivamente, longe da pista e das festas e bocas-livres dos camarotes.
          Avaliam-se as escolas hoje pelo número de celebridades que ocupam suas alas e carros alegóricos. Aposto que todo mundo sabe o nome da madrinha da bateria das grandes escolas, mas certamente ninguém sabe o nome das personalidades da comunidade que trabalham o ano inteiro pela grandeza de sua escola.
          O monopólio da transmissão pela Globo obriga o telespectador a ver abundantes imagens de seus artistas. Eles estão em quase todas as escolas, sem contar que uma delas, a Grande Rio, parece ter virado sucursal da emissora, permitindo a tomada de imagens para a novela das oito durante o desfile da escola. Bons tempos aqueles em que a Manchete transmitia os desfiles e, com muita criatividade, obrigava a líder a correr atrás do prejuízo. Com isso, quem lucrava era o telespectador.
          Por falar em monopólio da transmissão, tá difícil agüentar o modelo que a Globo impinge ao telespectador. As entrevistas priorizam os artistas da casa. O casal de apresentadores-narradores é jogado às feras. Vê-se nitidamente que não são do ramo e fazem um enorme esforço para tentar passar com naturalidade um script que repete as mesmas informações históricas de todos os anos e não conseguem fazer o telespectador entender o que o carnavalesco quis transmitir porque as imagens não combinam com o roteiro. O telespectador fica completamente perdido.
          É verdade que alguns carnavalescos “viajam” e transformam o desfile numa verdadeira babel, uma história sem começo, meio e fim. O que nos faz lembrar o saudoso Stanislaw Ponte Preta, pai do “samba do crioulo doido”, que eu recomendo aos mais jovens ouvirem urgentemente para entender melhor o que se passa naqueles 700 metros de pista do sambódromo.
          Não há dúvida, para quem assiste de casa, o desfile é chato, monótono e arrastado. Por mais bonito que seja, é duro ouvir um samba-enredo repetido à exaustão durante uma hora e vinte minutos. As imagens são as de sempre, desfilantes e modelos e candidatas a tal numa profusão de bundas e peitos, muitos siliconados, como se esculpidos pelo mesmo cirurgião plástico ou pela mesma academia de aeróbica. O samba definitivamente deu lugar às alas de passo marcado e à exibição de dançarinos profissionais. E o pessoal da escola, ó!!!
          Felizmente, o marasmo do desfile teve um momento emocionante, de rara beleza: o choro sentido dos integrantes da Velha Guarda da Portela impedidos de entrar na pista por ordem de um dirigente incompetente que temia perder pontos. Fechar o portão para a passagem dos verdadeiros sambistas, aqueles que dedicaram décadas de suas vidas à mais tradicional escola de samba do Rio, foi uma punhalada no coração da Escola. Ora, que se dane o tempo do desfile, mas aquela gente sofrida do subúrbio de Madureira, que vive a escola o ano inteiro, jamais poderia ter ficado atrás das grades por culpa de um regulamento autoritário que beneficia a forma em detrimento do conteúdo.
          A atitude do dirigente impediu também que a alegoria homenageando um dos modernos heróis da história brasileira participasse do desfile: a bandeira nacional com a foto de Sergio Vieira de Mello, aquele que deu sua vida pela causa da paz.
          Ivo Meirelles, comentarista da Globo, definiu numa frase a que foi reduzido o desfile dos tempos modernos. Ao ser questionado sobre a dificuldade do verdadeiro “samba no pé” alfinetou: “que nada, não é difícil não, dependendo de quem indica, qualquer um pode ser sambista em qualquer escola”.

Eliakim Araújo
(Publicado originalmente no site Comunique-se em 12 de janeiro de 2005)

 

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