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"Sei
muito bem que domingo de Carnaval não é dia para ninguém resmungar. Sucede
que os resmungos de hoje são, por assim dizer, carnavalescos, de modo
que, se não os resmungar agora, perco a ocasião. Não obstante, devo esclarecer
que não se trata de um resmungar ocasional, tanto que, já faz três anos,
desisti de ir à Marquês de Sapucaí assistir ao desfile das escolas de
samba.
E olhem que
eu fazia isso desde 1954, quando o desfile era na avenida Presidente Vargas,
onde não havia arquibancadas de nenhum tipo, o público ficava de pé nas
calçadas, de um lado e outro da avenida, e as escolas desfilavam sobre
uma passarela de um metro de altura talvez.
Depois, o
desfile passou para a avenida Rio Branco e, mais tarde, para a Antônio
Carlos, antes de se transferir definitivamente para a Marquês de Sapucaí.
Ali, nos primeiros
anos, as arquibancadas, construídas com tubos de metal e placas de madeira,
eram desmontáveis, o que resultava em grandes despesas para a prefeitura.
Decidiram então construir arquibancadas em caráter definitivo, cujo projeto
foi encomendado ao arquiteto Oscar Niemeyer; nasceu assim a passarela
do samba que se tornou conhecida pelo nome não apropriado de Sambódromo.
Naquela época
-antes da passarela definitiva-, lá pelos anos 60, nosso grupo de amigos
chegava à avenida por volta das 18h e só saía de lá quando terminava o
desfile, muitas vezes às 13h do dia seguinte. Foi a época de ouro dos
desfile das escolas de samba, que começou com as inovações introduzidas
pela Salgueiro nas fantasias e nos carros alegóricos, pondo fim às figuras
patéticas de condes e marqueses a sambar com chapéus de pluma empapados
de suor.
As escolas
cresciam de tamanho com a adesão da classe média da zona sul do Rio. Desfilando
com 4.000, 5.000 figurantes, o grande risco era ‘atravessar’ o samba e
perder pontos no quesito harmonia. Para resolver esse problema, juntou-se
ao desfile um carro de som com alto-falantes poderosos, onde iam o ‘puxador’
do samba e dois tocadores de cavaquinho; melhorou, mas não resolveu satisfatoriamente
o problema.
A solução
surgiria com a construção do Sambódromo, mas a emenda saiu pior que o
soneto: instalou-se uma rede de alto-falantes ao longo da passarela que
agora transmite a voz do ‘puxador’ e o som dos instrumentos numa altura
insuportável. Ao contrário de antigamente, quando se ouvia o samba enquanto
a escola estava passando e, ao chegar ao final da sua exibição, nossos
ouvidos descansavam até começar o samba da escola seguinte, agora você
tem que agüentar dez ou 12 horas de cantoria repetitiva em som altíssimo,
sem nenhuma trégua; verdadeira tortura para o espectador, particularmente
os de certa idade, como eu...
Mas isso é
o de menos. Muito piores foram as mudanças que terminaram por descaracterizar
a apresentação das escolas de samba, hoje transformadas em empreendimento
comercial, visando mais o lucro do que a qualidade e a autenticidade dessa
manifestação cultural popular, originalmente carioca, hoje nacional.
A necessidade
de limitar a duração do desfile levou à aceleração rítmica do samba de
enredo, que hoje de samba tem muito pouco. Por isso mesmo costumo dizer,
em tom de brincadeira, que as escolas de samba deveriam passar a se chamar
‘escolas de marcha’. Entregue a realização do desfile à Liga das Escolas
de Samba, dominada por ‘bicheiros’, muitos deles ligados ao tráfico de
drogas, o interesse econômico se sobrepôs a tudo, desde a escolha do enredo
e do samba até as fantasias e alegorias, que já quase nada apresentam
de novo, pois se tornaram meras cópias de tudo o que foi criado há duas
décadas pelo menos.
Em razão de
tudo isso, os preços dos ingressos, de tão altos, estão fora do alcance
dos moradores dos morros e subúrbios cariocas, as comunidades que deram
origens às escolas de samba e às quais elas permanecem ligadas. Os turistas
estrangeiros compram, em seu país de origem, um kit que inclui, além de
passagem e hospedagem, uma fantasia e o direito de desfilar numa escola
de sua preferência, mesmo que não saibam dançar nem cantar samba.
Não falo dos
camarotes, cujo preço para os dias do desfile equivale ao de um pequeno
apartamento. Hoje, são comprados por grandes empresas que os usam para
se promoverem.
Por isso mesmo
o público assiste a um desfile que, a cada dia, inclui mais gente de classe
média e turistas estrangeiros, uma vez que, nas grandes escolas, o preço
das fantasias exclui a participação do povão. A tradicional ala das baianas
só desfila porque a fantasia é paga pela escola. Como diz um amigo meu,
chegará o dia em que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro
terá a seguinte composição: brancos desfilando, brancos assistindo e crioulos
na bateria... Estes talvez ainda ali permaneçam por algum tempo por ser
necessário manter alguma coisa da autêntica escola de samba, de saudosa
memória. Mas não se sabe até quando, porque o que já tem de japonês, holandês
e sueco aprendendo a tocar tamborim, agogô e reco-reco não está no gibi.
Mas isso é
bom, dirá o leitor mais aberto a tais mudanças, para quem estes meus resmungos
de hoje não são carnavalescos, mas apenas saudosistas."
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