As muitas vozes de Lupicínio

 
          A cantora Elza Soares, como convidada de luxo numa das últimas semanas do espetáculo, leva brilho de estrela ao mês de reverência a Lupicínio Rodrigues (1914-1974) em curso no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, com shows às terças-feiras em dois horários (12h30 e 18h30), a cargo de vários intérpretes. Mãe de rua precoce que aos 15 anos amamentava um bebê e afagava outro na barriga de novo enorme, Elza conquistou o passaporte permanente para a carreira artística com o sucesso instantâneo, em 1959, da primeira gravação, um samba do compositor gaúcho. Não será tão excepcional assim o êxito definitivo a partir da largada. Mas é pelo menos curioso que, 21 anos antes, em 1938, o mesmo samba, "Se acaso você chegasse", tenha sido o abre-alas também da consagração de outro ídolo, o cantor Ciro Monteiro, dos mais talentosos e queridos do tempo do rádio.
          Ciro chamava "Se acaso você chegasse" de "meu hino nacional". Aprendera-o com um amigo que ouvira o samba em rodas boêmias de Porto Alegre. Lupicínio dizia que a música saíra do Rio Grande do Sul no repertório de uma orquestra de navio, sem qualquer menção ao autor. A gravação de Ciro revelava ao país o cantor, o compositor e a existência de samba no Sul, embora o nome de Lupicínio já houvesse figurado no selo de um disco de sambas dois anos antes – sem repercussão ou conseqüência.
          Lupicínio (Lupe) Rodrigues emergia a tempo de alcançar Orlando Silva ainda como o "cantor das multidões", já na ante-sala do declínio, é verdade, mas capaz de fazer uma vez mais, com "Brasa", o povo todo cantar. A aceitação nacional e a inclusão incontestável entre os grandes compositores não tardariam, impondo-se sobretudo com a fantástica seqüência de sambas, todos gravados por Francisco Alves, iniciada com "Nervos de aço" em junho de 1947 e culminada com "Maria Rosa", em dezembro de 1949. Integram o segmento "Quem há de dizer", "Esses moços" e "Cadeira vazia". Apresentados quase todos em orquestrações refinadíssimas de Lyrio Panicalli, avançadas ainda agora, mais de meio século depois, constituem a parte nuclear da obra do compositor, ainda que ela se estenda com igual felicidade para bem além da poética de confidências e intimidades amorosas que o fez famoso. Naqueles sambas se consolida a mais perfeita representação de uma poesia de dignificação do banal, não no sentido de vulgar, inexpressivo, mas de sentimento corriqueiro forte e intenso, carregado de sensualidade e passionalismo. São em geral versos e imagens que os poetas de formação acadêmica dificilmente ousariam arriscar, por medo de ofensa ao bom tom literário convencional. Lupicínio não conhecia esse comedimento e, no seu plácido atrevimento, acabava por espalhar também, generosamente, achados como o de batizar com o sobrenome Paixão a Maria Rosa de tantos amores e o de advertir os moços apaixonados de que "deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz".
          Francisco Alves gravaria mais um belo samba de Lupe, "Pra São João decidir" (no qual o compositor acusa o santo de traí-lo, numa disputa de namorada com um vizinho, em noite de festa junina). Mas antes de fazê-lo cederia a Linda Batista a primazia das interpretações. Cabe a ela estabelecer o sucesso pleno de "Vingança", provavelmente o maior de Lupicínio (e de toda a alentada discografia da cantora). Tal como "Nervos de aço", que tivera antes uma gravação de poucos ouvintes, entregue ao cantor Déo, "Vingança" teve um pré-lançamento pelo Trio de Ouro, como munição do líder do conjunto, Herivelto Martins, no prolongamento da guerra conjugal escancarada em que estava envolvido com a ex-mulher, a cantora Dalva de Oliveira, um ruidoso conflito fonográfico. Linda Batista revelou-nos o Lupicínio de "Dona Divergência", "Volta", "Foi assim" e "Migalhas". Dividiu a função de porta-voz do autor – como dividiria todas as glórias do estrelato e o doloroso fim de vida de privações e alucinações – com a irmã, de carreira paralela, Dircinha Batista, criadora do altivo "Nunca" e do vingativo "Ponta-de-lança", um dos preferidos do compositor.
          Nos anos 50, clímax da atividade e do prestígio de Lupicínio Rodrigues, todos queriam gravá-lo, desprezadas possíveis ou imaginárias incompatibilidades de estilo. A incrível fertilidade do boêmio trabalhador abastecia "cartazes" (artistas de grande público, no dialeto radiofônico) como, entre tantos, a diseuse Nora Ney, seu partner na arte e na vida Jorge Goulart, a buliçosa Marlene, a personalíssima Isaurinha Garcia, Nelson Gonçalves, Francisco Carlos, Gilberto Milfont (os sambas "Castigo" e "As aparências enganam", do mais explícito lupicianismo), Roberto Silva (o audacioso "Ex-filha de Maria", no qual Lupe cobra de Deus: "Se Ele não a quer mais, que me dê que eu a quero") e a rainha – do rádio e dos músicos – Ângela Maria. Outros soberanos, Luís Gonzaga e Carmélia Alves, reis do baião, viajavam da música nordestina para a vertente nativista da produção de Lupicínio, ele com as valsinhas "Juca" e "Jardim da saudade", ela com o quadro de costumes "Cevando o amargo", a caprichar na toada com o sotaque de quem viesse direto do galpão de um CTG (Centro de Tradição Gaúcha).
          Ainda na primeira metade da década, Jamelão vai a Porto Alegre como crooner da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo. A partir daí os sambas de Lupicínio Rodrigues ganham uma nova e irresistível abordagem, uma espécie de forma final, moldada no vigor vocal e na estupenda inteireza artística do cantor de Mangueira. Essa concepção prevaleceria até para números já sedimentados no gosto do público em outro modelo de canto, como os sambas "Meu pecado" e "Cigano", popularizados em magníficas criações de Moreira da Silva. As platéias passaram a ver em Jamelão a figura viva da obra de Lupicínio e a exigir, em cada show do cantor – como testemunhava Albino Pinheiro, que dirigiu dezenas deles –, a inclusão de uma média de três a cinco peças do compositor.
          Uma relação, mesmo desatenta, dos principais intérpretes do poeta gaúcho não poderia deixar de incluir pelo menos dois importantes artistas coestaduanos, o sambista Caco Velho e o eclético Alcides Gonçalves, cantor, compositor, violonista e pianista. Exímio pandeirista, Caco Velho, de nome civil Mateus Nunes, deve o nome artístico ao tanto que cantou, quando aspirante, o clássico samba-canção de Ari Barroso. Foi dos primeiros a cantar na televisão, no Brasil, e mais tarde, radicado em Paris, compunha, em francês, sambas nos quais chamava a musa de mon petit-pois. Seu maior destaque na obra de Lupicínio é a gravação do esplêndido samba sincopado "Que baixo!", que ele assina como parceiro. Mas o grande parceiro de Lupe é Alcides Gonçalves, o melodista requintado de "Quem há de dizer", "Maria Rosa", "Cadeira vazia" e "Castigo" (no primeiro desses quatro sambas admiráveis ele é até personagem, pois não é outro o namorado da dançarina que espera "louco de sono o cabaré terminar", descrito na letra). Voz de seresteiro, de baixos acentuados, Alcides viria a gravá-los também, muito mais tarde. Bem antes, naquele disco anterior às revelações trazidas no registro de "Se acaso você chegasse" por Ciro Monteiro, ele gravara, da parceria, os sambas ligeiros "Pergunta a meus tamancos" e "Triste história".
          Há quem afirme, porém, que o melhor intérprete de Lupicínio Rodrigues é o próprio Lupe, com sua voz de bar, macia, diminuta, palavras bem pronunciadas, inflexões adequadas tanto para as dores do amor como para a felicidade das coisas simples.
No Mínimo

Moacyr AndradeAutoria
(Publicado originalmente no Site No Mínimo em 21/09/2004)

 

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