Oswaldo Cruz

 

          Durante a época do Brasil Colônia, o que hoje representa a região suburbana do Rio de Janeiro fazia parte do chamado "sertão carioca", ocupado por prósperas fazendas e engenhos de açúcar que movimentavam a economia local através da força do trabalho escravo. Celeiro da cidade do Rio de Janeiro, grande parte dos produtos agrícolas consumidos pelos moradores do "recôncavo" era procedente desta região pouco povoada, que para muitos significava apenas algo longínquo e atrasado.
          Irajá, Pavuna e Inhaúma já eram nomes conhecidos no final do século XVIII. Só a freguesia de Irajá, fundada em 1644, contava com 13 engenhos de açúcar. Muitos destes tiveram seus nomes eternizados em bairros ou ruas desta imensa região, como Brás de Pina, Fazenda Botafogo e outros. Entretanto, para um deles estava destinado um futuro ainda mais grandioso, entraria para a história do carnaval e da cultura brasileira: o engenho do Portela. Assim, o nome desse antigo engenho açucareiro não só cedeu nome a uma estrada, mas também ganhou o mundo através da mais tradicional escola de samba do Rio de Janeiro: O Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela
          No final do século XIX, a economia escravocrata da região entra em uma irreversível crise. A inauguração de novas estações de trem facilita a ocupação dos antigos latifúndios outrora ricos e poderosos. Essas estações, que surgiam no núcleo central das propriedades ociosas, serviam de ponto de partida para a ocupação do novo espaço disponível. Destaca-se o então entreposto comercial servido tanto pelo ramal da central do Brasil quanto pela linha auxiliar: Madureira.
          Com uma localização privilegiada, meio caminho para todos os subúrbios, Madureira logo se destacaria como centro de uma grande região que incluía diversos bairros. Seu nome é uma homenagem a um dos principais boiadeiros da antiga fazenda local, Lourenço Madureira, o que deu ao bairro uma característica peculiar: Não incorporou o nome do patrão, do proprietário, e sim de um trabalhador, provavelmente devido a suas qualidades morais. Desde então, temos a vocação da região para o trabalho. Mais tarde, esta parte da antiga freguesia de Irajá se tornaria a XV região administrativa da cidade do Rio de Janeiro.
          Nos primeiros anos do Século XX, as transformações urbanas em curso no centro da então capital federal força a migração da população de baixa renda, sobretudo negros, para os morros próximos ao centro da cidade. Alguns deles, no entanto, partem de trem para reforçar o início da ocupação dos subúrbios. Muitos destes negros se estabelecem em um povoado que surgia próximo ao Rio das Pedras, que teria o mesmo nome do rio até ter ser modificado para Oswaldo Cruz, em homenagem ao famoso sanitarista morto em 1917.
          Temos assim uma contradição bastante interessante: Um bairro que homenageava um sanitarista que muita coisa fez pelo centro da cidade, vivia esquecido e sem a menor condição de higiene. De fato, o que se via em Oswaldo Cruz não era nada animador.As ruas eram de barro e margeada por barracos sem luz, água encanada, ou qualquer outra regalia comum em outras partes mais abonadas da cidade. Seus caminhos serviam de passagem para pedestres e cavalos, o meio de transporte mais utilizado na região. Por eles passava também todo o gado que abastecia o Rio de Janeiro, que desembarcava na estação de Oswaldo Cruz e caminhava até o matadouro da penha. O antigo engenho já não existia mais. Emprestou nome e espaço para a principal via de ligação entre Oswaldo Cruz e Madureira; a estrada do Portela. E é ao longo desta estrada que os primeiros "sambistas portelenses"  foram morar.
          Contudo, se o cenário encontrado no novo bairro era hostil , hostilidades maiores aqueles negros, ex-escravos e seus filhos, já tinham enfrentado em suas vidas de dor e sofrimento. Se a senzala e o banzo eram enfrentados com canto e dança, formas de manter viva as tradições herdadas de seus ancestrais na mãe-África, as dificuldades no novo ambiente não receberiam tratamento diferente. A humilhação e o aviltamento que os negros excluídos e esquecidos pela sociedade racista e desumana sentiam era combatida em forma de arte, música e expressões de uma cultura que insistia em se auto-afirmar apesar de tudo.  Assim, como num passe de mágica, surgem as belas poesias dos primeiros sambistas de Oswaldo Cruz. Os primeiros portelenses foram verdadeiros alquimistas. Magos capazes de transformar dor em arte e sofrimento em notas musicais. A dificuldade, em suma, foi a matéria-prima das primeiras composições da Portela.
          Se algumas absurdas teorias científicas do início do século subjugavam o negro, a comunidade de Oswaldo Cruz se fazia um exemplo claro da capacidade criativa e inovadora deste povo. O corpo social ajudava na superação dos problemas diários, que eram reconhecidamente coletivos. Cada amigo era valorizado como um irmão, um irmão de lutas, e cada vitória era a vitória da comunidade. Oswaldo Cruz, assim, era uma grande família que se ajudava mutuamente. A falta de lazer era compensada pelas festas, sobretudo as festas religiosas. Tudo isso  foi fundamental para que a Portela se transformasse no que é hoje. Apenas esta grande família conseguiria gerar esta fantástica e vencedora escola de samba. Não é por acaso que das inúmeras escolas que surgiam na região de Madureira e adjacências nas décadas de 20 e 30 apenas nossa Portela sobreviveu ao longo de todos estes anos.
          As ruas de barro, os barracos e os antigos currais já não existem mais. Vieram o progresso, o comércio e o moderno Shopping Center. Mas Oswaldo Cruz ainda preserva seu  típico aspecto suburbano. Um suburbano orgulhoso. Um suburbano que lembra seu passado contemplando o busto de Paulo da Portela, cantando canções de seus saudosos companheiros como Manacéia, Candeia, Alvaiade e muitos outros. A velha estação ainda presencia a passagem de grandes sambistas, gente como Monarco, Casquinha, Argemiro, Surica, Doca e tantos outros da velha-guarda. A nova geração faz-se presente com Marquinhos de Oswaldo Cruz, que carrega orgulhoso em seu nome artístico o nome do bairro em que nasceu. Um bairro que tanto contribuiu para a cultura e para a música popular brasileira. O bairro que nos deu a Portela. E com muito orgulho disso.

Fábio Pavão
(Publicado originalmente no site não oficial da Portela [www.gresportela.com])

 

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