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Vila
Isabel, modéstia à parte, é um lugar muito especial
Convidado
pelo amigo Saturnino Braga, participei de uma sessão na Câmara dos Vereadores
em homenagem a mais um aniversário do bairro de Vila Isabel. Lá estavam
dirigentes da Associação Comercial, os proprietários do Petisco da Vila,
dezenas de moradores e a viúva de Noel Rosas, dona Lindaura, que recebeu
a medalha Pedro Ernesto. Convocado para falar, confessei minha frustração
de nunca ter morado no bairro.
Não me estendi
muito porque não sou exatamente um orador articulado. Mesmo nos tempos
em que exercia a atividade política, meus discursos raramente ultrapassavam
a marca dos cinco minutos (desconfio até que ganhei alguns votos por isso).
Mas, assim como Paris vale uma missa, Vila Isabel vale um discurso. Aliás,
bastaria a figura do barão de Drummond, fundador do bairro, para um longo
discurso. Se fosse abordar outros moradores importantes, como Noel Rosa
e Martinho da Vila, aí mesmo é que eu não acabaria de falar tão cedo.
Quanto ao barão (João Batista Viana Drummond. mineiro de Itabira, como
seu provável parente, Carlos Drummond de Andrade), acho que ele está precisando
de uma boa biografia, porque as pessoas só lembram dele para dizer que
foi o inventor do jogo do bicho.
É muito pouco
para um personagem que criou o primeiro jardim zoológico da cidade, que
contratou o engenheiro Bitencourt da Silva para traçar as ruas de Vila
Isabel na antiga Fazenda do Macaco, que levou em 1873 o bonde para o bairro
e que só ganhou o título de barão porque, bem antes da abolição da escravatura,
alforriou todos os seus escravos.
O jogo do
bicho foi apenas um artifício do barão para estimular os cariocas a visitar
o seu jardim zoológico. Cada ingresso tinha um número e, no fim da tarde,
era feito um sorteio com prêmio de 20 mil-réis para o número sorteado.
Como cada número correspondia a um animal, o sorteio ganhou o nome de
jogo do bicho. Aliás, no tempo do barão de Drummond, eram trinta bichos.
Quando o jogo passou a ser feito fora do jardim zoológico, dançaram o
rato, o javali, a girafa, o tucano e a zebra (já que entrei no terreno
das histórias cariocas, vale a pena lembrar que a expressão deu zebra,
na Loteria Esportiva. nasceu de uma previsão do saudoso técnico de
futebol Gentil Cardoso. Ele era treinador da Portuguesa carioca e usou
a expressão para dizer que a vitória do seu time seria tão surpreendente
quanto, no jogo do bicho, dar zebra, isto é, dar um bicho fora
das cogitaçães. Mas a zebra, como vimos, está na origem do jogo).
Feita a defesa
do barão de Drummond, que, por sinal, pagou apenas a primeira prestação
da compra da Fazenda do Macaco, porque, ao morrer, a sua antiga proprietária,
a princesa Leopoldina, perdoou todas as dívidas de que fosse credora.
quero dizer que acho Vila Isabel o bairro mais carioca do Rio de Janeiro.
E um pedaço da cidade dotado de características tão especiais que é um
dos raros lugares cujos moradores não escondem a alegria de viver nele.
A frase modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila, de Noel
Rosa, por exemplo, revela uma postura muito carioca e nada defensiva de
ver o mundo. Quem diz sou de tal lugar, com muita honra já começa
na defesa. Mas modéstia à parte, eu sou da Vila é a manifestação
de uma superioridade tão óbvia quanto serena. É de gente que sabe que
está ganhando o jogo.
Quando os
meus amigos que moram lá reclamam que eu não tenho aparecido em Vila Isabel,
não revelam sentimento algum de rejeição, mas de solidariedade. Só faltam
dizer: Você não sabe o que está perdendo. Por falar em Noel Rosa,
é bom lembrar que, no tempo dele, a Vila significava para o Rio o que
Ipanema representou na década de 60. Era o bairro dos jovens artistas,
principalmente do pessoal da música popular, como o próprio Noel, Orestes
Barbosa, João de Barro, os irmãos Haroldo Barbosa e Evaldo Rui, Almirante,
Cristóvão de Alencar e tantos outros.
É evidente
que o tempo tem sido cruel com Vila Isabel, assim como com toda a cidade
do Rio de Janeiro. Os prédios substituíram as casas e a violência assusta
e atinge seus moradores. Mas a Vila tem uma alegria tão natural que basta
percorrer os seus botequins e as suas esquinas para percebê-la. Minha
pátria é o meu bairro, já ouvi de algum isabelense (é assim mesmo? Se
estiver errado que o leitor me perdoe). O que sei é que a identidade dos
moradores com o bairro foi a responsável, por exemplo, pela maior façanha
da história das escolas de samba, que foi a vitória da Unidos de Vila
Isabel no desfile de 1988. Naquele ano, sob o comando da presidente Ruça,
a escola realizou os seus ensaios na rua (porque perdera a sua quadra)
e venceu o Carnaval apresentando o mais belo desfile de escola de samba
que este veterano observador do samba carioca já viu em toda a sua vida.
Sabe o que deu naquela gente que desfilou? Um profundo sentimento de amor
ao bairro e à sua escola de samba. Esse amor foi o caminho aberto para
a garra e para a beleza.
Como se vê,
o aniversário de Vila Isabel seria o tema para um longo discurso. Mas,
para alegria de todos, continuo com essa mania de falar pouco. |