Superescolas de Samba S.A.

            Nasci em Madureira há quase 32 anos. Passei parte da infância no bairro, entre as ruas Carvalho de Souza e Edgar Romero, onde ficava a loja de meu pai. Cercado por uma família de portelenses, aprendi desde cedo a amar o Império Serrano, ainda num tempo em que a escola costumava brigar pelas primeiras colocações.
            Cresci acompanhando o processo que a fez submergir numa inglória batalha contra as dificuldades profeticamente anunciadas no célebre desfile de 1982. Em “Bum bum paticumbum prugurundum”, enredo com o qual conquistou seu último título, a verde e branco de Madureira alertava contra a megalomania que começava a tomar conta dos desfiles das agremiações e do carnaval. “Superescolas de samba S.A. / Superalegorias / Escondendo gente bamba / Que covardia” — diziam os versos de Beto Sem Braço e Aluízio Machado. Mal se sabia que o problema para o qual alertavam os dois compositores acabaria vitimando o próprio Império.
            Impotente diante da maior capacidade financeira das co-irmãs, despedaçada em razão de brigas políticas, a escola entrou num processo de sobe-e-desce entre os grupos Especial e de Acesso. Tal ambivalência espelhava involuntariamente uma indecisão entre o mergulho na própria tradição — que historicamente revelou uma postura crítica e combativa — e a aposta em enredos economicamente interessantes, como a lamentável homenagem a Beto Carreiro.
            Felizmente, este pêndulo nos últimos anos atou-se com mais firmeza à primeira opção. E a escolha de “Aquarela brasileira” — hino de Silas de Oliveira que animou o carnaval de 1964 — para a festa deste ano foi a confirmação disso. Malgrado as disputas internas, o Império conseguiu extrair deste retorno à sua seiva mais vital — a história — uma poderosa energia, um entusiasmo que chegou a extrapolar os limites de sua pequena mas fiel torcida.
            Foi impressionante a forma como a agremiação amealhou simpatias. Durante o período de ensaios, a quadra esteve cheia como nunca. Aos moradores de Madureira e da Serrinha, aos que sofrem ano a ano com a batalha do Império pela sobrevivência, juntou-se gente de toda a cidade. Havia saudosos da uma época em que o carnaval era cantado em composições como a do mestre Silas. Havia jovens da Zona Sul, aqueles mesmos que ajudaram a revitalizar o samba nas rodas que se espalharam por todo o Rio de Janeiro. Havia, sobretudo, uma enorme emoção no ar, que se traduzia na expectativa de entrar na Marquês de Sapucaí cantando a plenos pulmões a nossa “maravilha de cenário”.
            Toda esta expectativa foi confirmada na última segunda-feira. Mesmo diante das complicações pré-carnavalescas, como a verba engessada pela Justiça que prejudicou, por exemplo, os trabalhos de finalização dos carros alegóricos, a escola fez um desfile memorável. Não pelo aspecto técnico — as alegorias evidentemente não tinham riqueza comparável à das agremiações mais poderosas e apresentavam problemas de acabamento, as fantasias não primavam pela criatividade —, mas pela empatia imediata com o público, pela bateria impecavelmente harmônica, pelos componentes que cantaram “Aquarela brasileira” como se fosse um mantra. Como bem definiu o imperiano Zuenir Ventura, vivemos a “emoção que um bom samba pode produzir”, para além da “indigestão de beleza que ronda as escolas”.
            Terminado o desfile, boa parte dos que desfilaram seguiu caminhando pelo túnel em direção à Lapa. O samba ainda era cantado com euforia, em olhares cúmplices. Nas mãos, já um tanto combalidas pela chuva, as fantasias. Nas bocas, sorrisos serenos. No coração, a certeza de que no sábado estaríamos de volta, para reviver aquele episódio único. Mas episódios únicos não são revividos — e os jurados, do alto de seus tecnicismos, encarregaram-se de nos provar esta assertiva. Na Avenida, foram 80 minutos lúdicos, em que construímos juntos uma beleza simples, em que sentimos soar verdadeiramente os pequeninos guizos do que se pode chamar felicidade. Para além das notas, nós brincamos nosso carnaval. Diante disso tudo, da alegria que foi estar na Sapucaí, da frustração de não poder voltar, uma certeza é perene: restarão apenas lembranças boas — e um lamento.
            Ah, senhores jurados, nós só queríamos brincar mais um pouco...

Marcelo Moutinho
Publicado originalmente no Jornal O Globo - Opinião - em 01 de março de 2004
(Marcelo Moutinho é jornalista
)

 

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