Amor de carnaval |
|
Daqui
a pouco baiano vai poder fazer uma piada com carioca, porque se lá o carnaval
não termina nunca, aqui está começando desde a primeira semana de janeiro
– e essa coluna acompanha o ritmo. E começando um altíssimo astral e doses
generosas de samba: Moacyr Luz, Luiz Carlos da Vila, Teresa Cristina e
Jards Macalé encerraram três semanas no Canecão, Richah transformando
samba-enredo em hino no Carioca da Gema, o Cordão do Boitatá realizando
idílicos ensaios no Centro da cidade em plena noite de domingo, a quadra
da Mangueira hiperlotada como nunca e, talvez no mais emocionante disto
tudo, o Império Serrano, simplesmente. É experiência inesquecível – e, muito provavelmente, indescritível mesmo – o que representa hoje um ensaio da escola de Madureira. É bom remédio para quem acha que já viu tudo em carnaval, para quem está cansado da confusão das quadras, para os que vêem na reedição de “Aquarela brasileira” um atestado da falta de criatividade dos compositores de hoje. É excelente prova também para quem pensa ter perdido a capacidade de emocionar-se, sem bula ou cara de inteligente, com uma festa tão surrada e, ao mesmo tempo, inigualável. “E eu que não esperava ver o Império virando moda”, comentava, emocionada, uma jovem imperiana devotada, segunda geração de uma família que, sem ser de Madureira, pertence como poucas àquela escola. Pergunto se este ano vai, se o desfile vai arrebentar e espantar da escola uma maré de pouca sorte que já a empurrou até para longe do Grupo Especial. “Aí já é outra coisa”, responde ela, sorrindo com um ceticismo típico dos apaixonados que, mesmo maltratados, mantém-se fiéis. Este é, inegavelmente, um momento excepcional. Pois a escola criada em 1948 “vira moda” (este ano, é praticamente impossível encontrar vaga em qualquer das alas) com um samba de 1964, que celebra ufanisticamente o Brasil, uma espécie de versão-terreiro para a “Aquarela do Brasil”. É um dos melhores sambas-enredo da História – outro dos melhores também vem do Império, o “Heróis da liberdade”, de 1969 – e sua força na quadra é de, literalmente, fazer chorar. Guardadas por um imenso São Jorge, as milhares de pessoas reunidas ali parecem estar numa festa de família. Na Mangueira, outro ensaio emocionante, tudo se encaminhou - saudavelmente - para um grande espetáculo: turistas de todos os países e bairros do Rio, gente do morro, organização exemplar, segurança, R$ 20 de ingresso para conter a multidão – e assim mesmo reúne num sábado mais de 6 mil pessoas. No Império, tem-se a sensação de estar sendo recebido numa sala íntima, a bateria mais próxima, R$ 5 pagos na entrada, um pouquinho de confusão no portão, espaço à vontade para sambar lá dentro, mesmo com as hordas de turistas – principalmente de outros bairros cariocas – que a “moda” encaminhou para lá este ano. Na proporção final, creio que os imperianos assíduos se sobrepõem aos acidentais – como este que vos digita, traindo às escâncaras a Mocidade Independente de Padre Miguel com o álibi íntimo de o coração continuar verde-e-branco. Nas mais de quatro horas de ensaio, a bateria brilha intensamente. Tem uma sonoridade muito especial – talvez por conta dos míticos agogôs, muito provavelmente por conta de algo não mensurável ou explicável. É fato que não se confunde com nenhuma outra e, sobretudo na “Aquarela brasileira” ousa parar tudo no belíssimo refrão, os ritmistas ajoelhados, numa prévia arrepiante do que será isso na Marquês de Sapucaí, na virada da segunda para a terça de carnaval, por volta da meia-noite. Na primeira linha dos chocalhos, a amiga Rachel Valença. Filóloga, diretora do Centro de Pesquisas da Fundação Casa de Rui Barbosa, ela dedica uma generosa parte de seu tempo ao mundo imperiano. Autora, com Suetônio Valença, de uma valiosa história da escola, “Serra, Serrinha Serrano: o Império do Samba”(José Olympio, 1981, esgotado), Rachel é Império no ritmo e na cabeça: é dela a concepção e curadoria do excelente site da escola (www.imperioserrano.com), uma viagem virtual com todos os sambas disponíveis em áudio, fotos dos desfiles, a memória completa. Na homepage, um depoimento dela resume de forma exemplar o que se vê estampado em cada rosto orgulhoso da quadra: “Quando do alto do box da bateria, na quadra do Império Serrano, eu olho a quadra lá embaixo, um sentimento de orgulho toma conta de mim e não posso evitar um pensamento condenável pelo que há nele de soberba e vaidade: ‘Meu Deus, como pude chegar tão alto nesta vida!’ Perdoem. Sei que é muito feio sentir-me assim. Mas não tenho vergonha de confessá-lo, porque não é de mim que me orgulho, é desta bateria fantástica que não toca, como as demais: pulsa como um coração amante. (...) Nunca mais pude desfilar no Império Serrano sem chorar: se estou dentro da bateria, choro de emoção, a emoção incontrolável de não me sentir digna de tanta honra e de tanta beleza. Se estou fora da bateria - e isto só aconteceu ou por punição (Beto Carrero me custou bem caro...) ou porque o Império precisou de mim em outra atividade - as lágrimas são de tristeza, por estar longe daquilo que é a razão de ser da minha vida, minha paixão, meu orgulho maior: este coração pulsante, que dá vida ao Império Serrano. Que assim seja, por muitos e muitos anos ainda. De preferência para sempre”. Confesso que tenho pela frente duas semanas de ansiedade. Contagem regressiva para entrar na Marquês de Sapucaí cantando os versos de Silas de Oliveira. Não o farei, é óbvio, com a autoridade e a intensidade de quem há anos se dedica, na alegria e na tristeza, às cores do Império Serrano. Minha paixão, já confessei, é adúltera. Mas, como todo mundo sabe, os amores de carnaval são como os de verão: nascem e morrem (ou não) na mais intensa alegria e espontaneidade. Repetindo a Rachel: “Que assim seja, por muitos e muitos anos ainda. De preferência para sempre”. |
|
Paulo
Roberto Pires |
Artigos |