Tiroteio, improviso, passarinho |
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Quando o apito
da fábrica de tecidos soava, Anescarzinho largava os panos, com os quais
tinha aprendido a mexer num curso do Senai, e ia para o samba, com o qual
tinha aprendido a mexer por conta própria, inteligência, talento brilhante,
cabeça musical de riqueza sem par. Há algum tempo ele já não lidava com pano. Só com samba. Estava com 69 anos e em forma. Morreu no início da semana passada. Foi para o grande fundo de quintal lá de cima, reencontrar Zé Kéti, Cartola, Nélson Cavaquinho: cantou pra subir, subiu pra cantar. A notícia da morte tinha desencontros. Foi o coração, disseram alguns obituários. Foi um tombo, conta Paulinho da Viola. Anescarzinho do Salgueiro estava no ônibus, caiu. Quiseram levá-lo para um hospital, mas ele, numa reação muito típica, desdenhou. O hospital era longe, ele estava bem. Em casa, caiu de novo, no banheiro. Bateu com a cabeça na louça e babau, pediu o chapéu. Foi um dos fundadores da Acadêmicos do Salgueiro, que, como se sabe, resultou da fusão da Depois Eu Digo com a Azul e Branco. Mas isso foi em 1953. Quatro anos antes, Anescarzinho estava na Unidos do Salgueiro e o presidente da escola, Manuel Macaco, pediu-lhe que fizesse um samba. Os compositores estavam em greve. Ele fez Maravilhas do Brasil e brilhou na avenida, embora tenha tirado um quinto lugar. No ano seguinte, compôs Mártires da Independência, com Noel Rosa de Oliveira, seu parceiro (mais Walter Moreira), nos maravilhosos Quilombo dos Palmares, que deu título ao Salgueiro, em 1960, Descobrimento do Brasil e Chica da Silva, o samba-enredo mais bonito de todos os tempos, perguntem a quem entende. Depois, entrou para o conjunto Voz do Morro, vejam só: Anescar, Jair do Cavaquinho, Zé Kéti, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Nélson Sargento, Oscar Bigode e Zé Cruz. Com Paulinho (que depois saiu, dando lugar ao Mauro Bolacha), Elton, Nélson e Jair, criou o Cinco Crioulos. Participou do show Rosa de Ouro, que trouxe a nós a voz da rainha negra Clementina de Jesus, Mãe Quelé. Mas com tanta história e resultante glória, Anescarzinho do Salgueiro era só um neguinho simples, magrinho, simpático, contador de história, sentado aqui com a gente, batendo papo, tomando cervejota. Ele descia a ladeira, pegava dois ônibus e cruzava a Guanabara. Nosso ponto de encontro era um boteco no centro de Niterói, que não existe mais (o boteco, bem sabido). Délcio Carvalho vinha também. Olhava a mesa, o montão de cerveja, dizia assim: "Ih, e aí?" - e entrava na roda, que varava a noite e arrebentava com nossos bolsos. Na madrugada íamos para casa cantando. Para casa: eu morava num apartamento de cômodo único, banheiro embutido, cozinha num armário (é verdade), com meus discos, aparelho de som, violão, livros, máquina de escrever (lembram?), um sofá que virava cama e uma vista magnífica para a Praia de Icaraí, do outro lado da rua. A geladeira tinha a tranca (daquele tipo antigo) quebrada. Só às vezes eu conseguia abri-la. De modo que, para continuar a música, o jeito era ir na cachacinha, fornecida por um primo do Nei Lopes, que a trazia das Gerais. Um dia, Anescarzinho contou que seus passarinhos, e ele tinha muitos, só cantavam quando havia tiroteio no morro. Achei engraçada a história, dessas de folclore, mas Anescarzinho jurou: "É pá, pá, pá, e aí os bichos ti, ti, ti. Vou provar." Apareceu na semana seguinte com uma fita. "Põe pra tocar", disse sério, de um jeito que não era comum. "Samba novo?", perguntei. "Não, a prova dos noves." Pus a fita. Barulhos de casa: torneira abrindo, prato quebrando, criança chorando, cachorro latindo ao longe, alguém passando e perguntando pela janela se vai tudo bem. Meia hora disso. De repente, começa o tiroteio. "Pá, pá, pá" - a mulher mandando recolher as crianças e os passarinhos ti, ti, ti, na maior alegria. Quanto mais tiro, mais pipilos. Espanto só. "Inspiração, cada um sabe de onde vem a sua", pontificou Anescarzinho. Pegou a caixa de fósforos e compôs um samba lindo sobre o assunto. Não gravamos. No dia seguinte, havia esquecido. |
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Mauro
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