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Há
dez anos, por ocasião de um tributo no Free Jazz Festival, o jornalista
Ruy Castro elegeu Tom Jobim como o maior brasileiro vivo, e ninguém
teve a insensatez de contestá-lo. Depois da morte de Tom, um ano
após aquele show, nenhum outro nome foi sugerido para ocupar o "posto"
vago.
Pois chegou o momento de lançar a candidatura de Paulinho da Viola ao
título de maior brasileiro vivo. E, se alguém discordar da idéia,
que vá ver o documentário "Paulinho da Viola – Meu tempo é
hoje", dirigido por Izabel Jaguaribe e roteirizado por Zuenir
Ventura.
Assim como Tom, Paulinho sintetiza, em vida e obra, um ideal de brasilidade:
a sofisticação disfarçada de simplicidade, a elegância sem ostentação,
a delicadeza no convívio cotidiano. E o documentário que estréia
agora capta tudo isso com extrema felicidade.
Pelo resultado na tela, parece tarefa fácil. O Paulinho da Viola do filme
revela-se um personagem perfeito, contando casos de sua vida, facilitando
o acesso a seus familiares, interpretando dezenas de músicas, topando
duetos com vários artistas. Mas quem já teve a oportunidade de entrevistar
o cantor sabe que essa facilidade é tão ilusória quanto a de seus
acordes.
Paulinho não é exatamente um entrevistado difícil. Ele não sofre do mutismo
de um Milton Nascimento, nem da verborragia de um Gilberto Gil.
Tem um discurso bem articulado, mais sugestivo que conclusivo, de
uma sabedoria quase zen. Mas é um entrevistado precavido. Ele guarda
seu mundo com a rara virtude do recato e só abre suas portas para
as pessoas em quem confia.
O primeiro grande acerto do documentário foi escalar Zuenir Ventura, amigo
de Paulinho, para fazer as entrevistas e intermediar o contato do
artista com o espectador. Este não é um filme que demorou apenas os
dois anos de sua produção para ser concluído. Ele foi gestado ao longo
do tempo de uma amizade.
O segundo acerto foi escolher como tema do documentário a relação de Paulinho
com o tempo, um enfoque ao mesmo tempo delimitador e abrangente.
Se quisesse retratar todo o universo do artista, o filme não daria
conta de muitos detalhes. Se preferisse outro assunto, corria o
risco de deixar o essencial de fora.
O grande segredo da obra Paulinho sempre foi a conjugação mais-que- perfeita
entre passado, presente e futuro. Isso fica claro quando ele canta
"Meu mundo é hoje/ Não existe amanhã para mim" (de Wilson Batista);
ou "Quando penso no futuro não esqueço meu passado" (de lavra
própria). E ainda mais explícito em declarações como "Meu tempo é
hoje. Eu não vivo no passado. O passado vive em mim"; ou "A
saudade anula a história e a vida".
A comprovação das frases acima está em dois belíssimos números musicais
do documentário: "Para Fugir da Saudade", com o canto de Paulinho
acompanhado pelo violão do pai César Farias e o coro de três de
suas filhas; e a instrumental "Rosinha, Essa Menina", levada
por três violões – o de Paulinho, o do pai e do filho João (dá vontade
de rezar: "em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém").
A questão do tempo está presente não apenas na música de Paulinho como
também em seu cotidiano. Da mesma forma obsessivamente perfeccionista
com que reinventa o samba, Paulinho também restaura objetos antigos,
sejam eles carros, relógios, cadeiras ou tacos de bilhar.
O documentário sabe alinhavar esses dois mundos de Paulinho com graça
e precisão. Como na cena em que Lila, mulher do cantor, se revela
decepcionada ao ver o estado precário de um carro que ele havia
quase terminado de recuperar, mas que desmontara outra vez por não
ter ficado perfeito.
Sabiamente, o filme deixa de lado o episódio dos cachês do réveillon carioca,
que causou o rompimento de Paulinho com Caetano e Gil. Esse talvez
seja o único fato da vida do cantor sobre o qual dá para afirmar
que é coisa do passado.
À falsa polêmica, o filme contrapõe um punhado de cenas memoráveis: o
pagode na casa de Zeca Pagodinho em Xerém com a nata do samba carioca,
Paulinho cantando "Carinhoso" com Marisa Monte, o pessoal da
Velha Guarda da Portela comentando a ironia de ter o "jovem"
Paulinho como padrinho.
Há também alguns senões, como a ausência de um dueto com Teresa Cristina,
discípula mais dedicada e talentosa do cantor na linhagem portelense,
e a interpretação exagerada de Marina contrastando com a contenção
de Paulinho em "Para um Amor no Recife". Mas são detalhes que
não arranham um filme digno de seu retratado – o que, no caso, é um
baita elogio.
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