A Curva

 

          Que me perdoe o Caetano, mas perto do cruzamento da Marquês de Sapucaí com Presidente Vargas, a Ipiranga com a São João é fichinha. Imaginem o que deve ter acontecido com o coração do baiano quando entrou ovacionado na avenida com o enredo da Mangueira em 1994, em homenagem aos Doces Bárbaros. Bairrismos a parte, pensem só no franzino poeta cantarolando “alguma coisa acontece no meu coração. E só quando cruzo a Presidente Vargas com Marquês de Sapucaí”.
          Tudo bem que a rima e a métrica foram pro espaço, mas o importante é registrar que aquela curva tem alguma magia inexplicável que conjuga, nos dias de folia, uma descarga potentíssima de energia. Presidente Vargas com Marquês de Sapucaí. O endereço da aflição, da ansiedade, da alegria e da inexplicável sensação de dar à luz um desfile. No caminho das escolas, a curva funciona como uma cortina que se abre aos milhares de protagonista do grande teatro do carnaval.
          De cara, o incauto desfilante se depara com a feérica iluminação e como pano fundo o monumento da Praça da Apoteose. Essa visão por si só já é de fazer levar o coração à boca. Imaginem só com todo o setor um cantando junto, vibrando, aplaudindo... É uma sensação única, daquelas que todo ser humano deveria experimentar pelo menos uma vez na vida.
          E lá do alto, testemunhas e catalisadores do transe do desfilante, os espectadores vêem ser costurado um grande tapete com as cores da escola, entrecortados por imensos monumentos nascidos da mais pura arte do povo. Não é à toa que esta fórmula tão peculiar de celebrar a beleza e a alegria está viva há mais de setenta anos. E ganhou um charme maior ainda quando a curva passou a ser elemento importante para o sucesso de um desfile.
          Por certo, na curva dormita o Deus do carnaval. Um ser transcendental, inexplicável e imprevisível que vez por outra desperta do seu sono, estica sua varinha mágica e diz: “É esta escola que vai acontecer aqui”. Incluo nessa lista desfiles memoráveis, como a Kizomba da Vila, a Paulicéia Desvairada da Estácio, o Ita do Salgueiro. Mas como a mão que afaga é a mesma que apedreja, este mesmo Deus pode destinar sua ira em outras ocasiões, como foi o caso da Dança da Lua da Estácio, do Sonhar Não Custa Nada da Mocidade, da Vila Isabel em 1986, com seu luxuoso enredo sobre as marchinhas, ou mesmo o Salgueiro com seu “Skindô, Skindô”, desfiles que não tiveram uma recepção tão grande como o esperado.
          Tenho um amigo que defende a tese de que o desfile deveria ser pista oval, como na Fórmula Indy. “Assim teríamos não só uma, mas várias curvas”, conclui. Eu vou além. Ao conceber o projeto do sambódromo, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer não poderiam prever a pirâmide invertida que estavam criando. A grande apoteose do sambista não é na praça, é na curva. E mesmo sem uma ligação física contínua entre os setores na avenida, uma escola que entra bem na Sapucaí joga energia para a arquibancada, que devolve a vibração e a impulsiona até o final do percurso. Em outras palavras, toda escola que quiser ganhar o carnaval deve estar em paz com aquela encruzilhada. E evitar derrapar na curva."

 

Gustavo Mello
29 de abril de 2003

(É jornalista, do Departamento Cultural do Salgueiro e autor do Blog "Boi com abóbora")

 

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