União do Parque Curicica 2003
O Mercadão na alma da gente

 

          Há sambas que se justificam por um único verso, ou ainda por uma única palavra. Esse é o caso do memorável samba do Parque Curicica no Carnaval 2003, quando a escola pela primeira vez pisou o chão da Marquês de Sapucaí. O enredo sobre o Mercadão de Madureira a princípio parece pouco promissor. Mas mais que puro poder de síntese, trata-se de recurso de incalculável apelo emocional.
          Os quatro versos são esses:

"E de repente fogo! alguém gritou
O velho mercado ardeu
Madureira chorou ... chorou
E a alma da gente doeu "

          No meio da segunda parte do samba, os compositores atingiram a parte essencial do enredo: a retratação da tragédia do incêndio que destruiu o mercadão. Os compositores conseguiram exprimir todo o impacto da tragédia em quatro versos de enorme objetividade e impacto emocional. No primeiro verso, a surpresa ante ao inesperado (de repente), a reduzida importância das causas em proporção ao alcance das conseqüências, a dramaticidade da percepção do instante da tragédia, a original mescla do discurso direto e indireto. No segundo, a felicíssima expressão "ardeu", o discreto uso do adjetivo "velho", que insere todo um implícito recado sobre o papel do tempo e da decadência física. No terceiro, usando o bordão de um conhecido samba, a idéia do mercadão como símbolo de uma coletividade, expressão de todo um bairro (quem chorou foi Madureira...). No quarto, enfim, um verso irrecusável, a máxima da síntese entre a objetividade e o apelo emocional, entre o discurso metafórico e a expressão concreta: a alma doeu.
          Mas na verdade a grande invenção deste samba de Curicica ainda está para ser assinalada, e se resume no emprego preciso de uma única palavra: é o segundo "chorou" no terceiro verso. Essas duas sílabas modificam completamente tudo o que se pode esperar de um samba-enredo. Trata-se de uma enorme contribuição, no sentido de como o samba-enredo pode recuperar um valor expressivo, de como pode ser possível materializar um sentimento. A conclusão dos compositores parece ser pela via negativa: repetir a palavra "chorou" significa que nada mais pode ser feito diante da tragédia, a não ser aceitar os fatos e sucumbir diante da tragicidade do destino. Nada mais resta a "Madureira" a não ser chorar, testemunhar e lamentar a perda de seu símbolo. O que fazer diante do terrível incêndio que destruiu o mercadão? Com isso, o samba acaba assumindo dimensões muito amplas, ao se debruçar sobre a finitude da vida e a impotência da condição humana para lidar com isso. Através da impossibilidade de expressar um sentimento, repetindo a palavra "chorou", os compositores assumiram uma idéia de impotência e sua fragilidade, incorporando-as à própria estrutura do samba. Só então podemos calcular o impacto do quarto verso "e a alma da gente doeu", como uma das maiores expressões de desnudamento da atual safra de samba-enredo.
          Mais haveria a ser comentado sobre este samba, como, por exemplo, o belo início:

"É madrugada
o galo canta
lavrador se levanta
vai trabalhar"

          Que permite um contexto contemplativo ao inserir a importância da rotina no funcionamento diário do mercadão. Mas tudo se desvanece quando se compara aos antológicos quatro versos descritos. Com uma única palavra, os compositores de Curicica conseguiram retratar todo um sentimento de dor e de perda diante da tragicidade do destino. É mais que o suficiente para um samba.

 

Marcelo Ikeda
04/08/2003
(Componente da lista de discussão Planeta Samba)

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