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Rio,
Desde que o samba é samba é assim: a tradição se renova com o rio
da vida
Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho
da Viola , de Eduardo Granja Coutinho. Eduerj, 182 páginas.
R$ 22,50
Há quase vinte anos, em fevereiro de 1983, o “Pasquim” publicava uma entrevista
na qual o cartunista Angeli conversava com Arrigo Barnabé. Na sua irreverência
e efervescência criativa, Barnabé esbravejava contra a massificação da
música brasileira, que ele definia como “som global”. Para o cantor, nossa
música ia mal e, para reverter esse quadro, sugeria: “Eu acho que as pessoas
precisam ouvir mais o Paulinho da Viola”.
Duas décadas se passaram até termos em mãos esse apaixonado trabalho de
Eduardo Granja Coutinho. Fruto de uma tese de doutoramento em comunicação,
Coutinho não fez, nem pretendeu fazer, uma biografia de Paulinho da Viola.
Até porque seria cedo. O sambista ainda tem muito a percorrer e nos encantar.
O que Coutinho buscou, e de forma lúdica conseguiu, foi, a partir da trajetória
desse sambista, debater as transformações culturais de um país nos últimos
40 anos. Ou seja, o foco é: como se podem entender e destrinchar os códigos
do mercado fonográfico que impõe o que ouvimos.
Celeuma do ‘réveillon’ de 1996 é retomada
Então, como decifrar os porquês, segundo as indagações de Coutinho, de
um disco que vende muito bem ser retirado de catálogo. Não estando à venda,
não está disponível, não pode ser adquirido, ouvido, consumido e degustado;
mas se teve boas vendagens, tem público consumidor. Essa aparente contradição,
no entanto, certamente indica que a indústria não estaria interessada
em atender a esse paladar. Mas também mascara o verdadeiro lugar, “nas
paradas de sucesso”, daquele artista.
Indagando acerca dessa “balança” de valores que dita as regras do consumo,
Coutinho retoma a celeuma do réveillon de 1996. Naquele momento,
rodeado por cantores do seu naipe, Paulinho da Viola recebeu um cachê
de menos de 1/3 do valor dos outros artistas. As leis do mercado e a exploração
da imprensa imputavam a uma suposta, e não verídica, baixa vendagem a
resposta para a diferença de remuneração. Para Coutinho, entretanto, o
nó é outro.
O autor constrói, para desatar essa e outras armadilhas, uma trilha que
sintoniza o processo por que passam, e o peso que vêm recebendo o samba
e a cultura popular na História nesse país. No cerne da problemática,
o conceito-chave é o sentido plural de tradição. É a partir dele que se
arma, como uma teia, que se sustentam e se questionam as relações entre
políticas culturais, cultura popular e elite nacional. Para Coutinho,
o diplomático, curioso, mas antes de tudo e sempre o sambista de raiz,
Paulinho da Viola, que, como óleo que não se mistura, transita e dialoga
com as várias vertentes da música, responde a isso em “Argumento”. Lá,
define que “Tá legal, eu aceito o argumento. Mas não me altere o samba
tanto assim”.
Como o samba, as diversas expressões da cultura e da cultura popular se
mantêm, reciclam-se e se difundem quanto mais perto da base e da tradição
estiverem. É nesse ir e vir ao passado, ao berço, que os signos culturais
são reelaborados e uma historicidade, identidade e memória grupal são
reafirmadas. Tal processo é fundamental para definir os parâmetros de
um povo. Cortar essa raiz, essa estrutura, é, literalmente, destruir a
floresta, o chão. Nesse sentido, o trabalho de Coutinho se debruça sobre
uma questão crucial, o enlace entre cultura popular/identidade nacional.
Dar passado ao futuro, trazer à tona os legados
Sua investida nessa discussão, contudo, é bastante original e inovadora.
Diferente de outros estudos que se esforçaram em compreender os intelectuais
da geração de 1870 ou os modernistas de 1922, por exemplo, e suas percepções
dessa relação identidade/cultura, a proposta de Coutinho se ancora em
uma outra perspectiva. A reflexão se volta para o contemporâneo e para
a visão da obra de Paulinho da Viola como um representante de uma “tendência
alternativa que não compreende a cultura popular como objeto, fundamento
da identidade da nação, mas como expressão da vida de um outro sujeito
coletivo”. Sem saudosismo e idealizações, Paulinho da Viola, por Coutinho,
aposta e aponta que o “samba se transforma como a vida”. É nesse berço,
nessa raiz, nessa tradição — nas manifestações de uma cultura popular
de um presente/passado próximo — que o autor demonstra seus argumentos.
No fundo, ao fim, quando se conclui a leitura dessas velhas histórias,
descobre-se que há um tesouro a ser localizado. O mapa e o valor que se
irão encontrar serão atribuídos aos modos de sobrevivência que tradição/tradições
terão. É nesse exercício de remexer as raízes e trazer à tona os legados,
de revisitá-los, dando um passado ao futuro, que rota e tesouro, caminho
e riqueza são construídos. Nesse sentido, portanto, em 1983 como agora,
“eu acho que as pessoas precisam ouvir mais o Paulinho da Viola”.
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