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Resta no ar a batida solene de um surdo marcando
o adeus à dama do samba
Às
vésperas do carnaval perdemos Dona Zica. Será que dá para levar a sério
um ano que começa se dando ao luxo de perder um de seus maiores mitos
do carnaval? Justamente quando o novo governo assume e realça a esperança
através de símbolos e sonhos, dona Eusébia Silva de Oliveira morre aos
89 anos. Se ela morre, fico imaginando o que pode acontecer com a gente,
meros coadjuvantes da história da vida.
A saúde de Dona Zica já estava debilitada fazia tempo. Até que, numa manhã
besta qualquer, seu coração parou. De nada valeram as preces para que
no carnaval ela pudesse estar na Sapucaí. Agora, trazida pelo vento, resta
no ar a batida solene do surdo marcando dolorosamente o adeus à dama que
cuidava dos meninos e meninas da Mangueira.
Sua atuação amplificou a Estação Primeira para o mundo. Ali, onde viveu
Nelson Cavaquinho, Dona Zica, a viúva de Cartola, viveu seu reinado com
doçura e firmeza. À Mangueira, tudo; às co-irmãs, o regulamento, assim
ela pensava e agia. Símbolo da nação mangueirense, Dona Zica fez do morro
e do samba seu cotidiano. Sem Dona Neuma, morta no ano passado, cabia
a ela defender a verdade de que sambista tem valor e que o morro tem vez
quando seus moradores se conscientizam do seu valor. Pobre na Mangueira
é distinto todo dia, não apenas nos quatro dias de carnaval. Os Orfeus
e Conceições que habitam suas vielas têm a beleza de uma alegoria fantástica
concebida por um destino mágico que nem o mais alucinado dos carnavalescos
ousaria criar.
Por onde andará Dona Zica? Morta e tão presente. Ausente, mas viva no
samba que sai triste da garganta do povo. A quadra da verde-rosa vela
sua eterna primeira-dama. Não se ouve choro, não se vêem velas. A Mangueira
sabe reverenciar seus filhos. Lá, dizia Nelson Cavaquinho, que vivia tranqüilo
por saber que alguém choraria quando ele morresse. Choro que vem do cavaquinho.
Soluço que sai da cuíca. Lamentos de um choro feito por bambas exemplares
em sua sabedoria majestosa.
Aos historiadores caberá interpretar para as gerações futuras o significado
da perda de Dona Zica, pois generosa é a mangueira que abriga sob sua
sombra uma geração que fez, faz e fará a história da nossa cultura popular.
A eles, historiadores, confiamos o registro da vida dos sambistas que
são muito maiores do que a vida simples que levaram.
Dona Eusébia está em paz. Lá, onde estão seu marido e seus contemporâneos,
ela descansa ao som de trombetas tocadas por anjos travestidos de pierrôs
e colombinas. O ritmo que dá vigor ao som celestial vem daqui debaixo,
onde ficamos: tamborins e tantãs puxam a ala da bateria desfilando pelas
ruas do Rio, se espalhando e contagiando todo o Brasil. Até que, ao sinal
do mestre de bateria, sentiremos uma pausa imensa... E dela emergirá a
voz de Jamelão.
Seu vozeirão ressoará dentro de nossas almas e nos lembrará entes queridos
que se foram sem pedir permissão e nos deixaram atônitos por suas ausências
que jamais serão preenchidas. É assim, eles se mandam e nos deixam aqui
com a missão de continuarmos neste mundo que parece sem música: mudo e
surdo.
Eles morrem e nos legam lições de vida que só percebemos ao som dos lamentos
pela partida. Aí é tarde.
O carnaval sem Dona Zica será um desafio para os mangueirenses. O morro
da Mangueira sem Dona Zica terá um dia-a-dia mais difícil. As crianças
da Mangueira terão de acreditar que são fortes para irem ao futuro que
Dona Zica lhes apontou. Lá do céu, toda a velha-guarda da Mangueira reunida
em torno de Dona Zica sentirá orgulho de sua gente que canta e samba não
à morte, mas à vida que continua. E à esperança que não morre.
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