O desfile do setor 3 |
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Existem
partes dos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial que só são vistas
do setor 3, o primeiro depois de cruzada a linha que determina o início
do show para valer. O esquenta das escolas, por exemplo (que até hoje a
produção do espetáculo não soube coordenar a ponto de subir o seu volume
para toda a avenida), normalmente com sambas-enredos antigos e/ou de sucesso,
o pessoal do 3 vê e canta junto. Não foi o que aconteceu com as duas primeiras
escolas que desfilaram ontem, ambas denominadas Acadêmicos, da Santa Cruz
e do Salgueiro. Motivo: preocupadas com o tempo, as duas entraram sem esquentar,
direto no samba de 2003. O público das frisas do setor 3 lamentou (não muito
no caso da Santa Cruz, que pouco tem em matéria de sambas mais conhecidos)
e tratou de prestar atenção nos desfiles. A verde-e-branco Santa Cruz contou com aquela simpatia da escola que abre o carnaval, bem medida no termômetro do Setor 1, ali ao lado. O setor, uma grande arquibancada em frente à reta final da concentração, aplaudiu a bateria da agremiação, que no início portou-se bem. É impressionante a semelhança de estilo entre ela e a bateria da Mocidade, vizinha de Zona Oeste. As duas estiveram, mais ou menos recentemente, nas mãos de Mestre Jorjão, aquele da paradinha funk da Viradouro. Em 2003, no entanto, a Santa Cruz errou muito, principalmente nas paradinhas. O correto desfile sobre a história do teatro - aberto com o ator Paulo Goulart, que representaria o mesmo papel na Viradouro, três escolas depois - de início deu a impressão de que a Santa Cruz venderia caro sua queda de volta para o Grupo de Acesso A, mas no final mesmo os animados foliões do setor 3 já achavam o descenso da escola inevitável. Bandeirinhas e lenços vermelhos na cabeça prepararam o público para a vinda do Salgueiro, dentre as escolas de domingo (dia que, tradicionalmente, não traz a campeã do carnaval) a mais cotada em 2003. Vestida rigorosamente em vermelho e branco, a escola emocionou desde o início (o que gerou um prematuro grito de “É campeão!” no setor 1, antes mesmo do início do desfile), mas perdeu pontos (junto ao público) por não esquentar, a exemplo da Santa Cruz, talvez pela preocupação com o tempo. “Peguei um Ita no Norte”, que deu a escola o campeonato de 1993, ajudaria a acender o público. De qualquer maneira, o setor 3 ficou praticamente todo em pé (turistas japoneses não contam, eles só se levantam para ir ao banheiro ou tirar fotos) enquanto a escola contava sua história e lembrava os oito campeonatos que guarda em sua sala de troféus. Os mais velhos lembraram desfiles como “Festa para um rei negro”, enquanto os mais jovens elogiavam as alegorias do carnavalesco Renato Lage, notando que ele deixou o estilo high-tech que o havia consagrado na Mocidade Independente de Padre Miguel, investindo em um visual mais conservador. Isso talvez tenha detonado uma típica reação a desfiles do Salgueiro: após a saída da bateria, o público perdeu um pouco do entusiasmo. Quando entravam os setores referentes ao bicampeonato de 1974-75, a platéria já olhava para o relógio, pensando se a escola conseguiria encerrar o desfile a tempo. Não conseguiu: devido a um problema com um carro alegórico, o Salgueiro ultrapassou o tempo-limite em quatro minutos. A sensação de que o campeonato não viria, que já era clara mesmo sem o atraso, ficou ainda mais nítida. O primeiro esquenta da noite ganhou de cara a simpatia do público: a Grande Rio ensaiou ao som de “No mundo da lua”, belo samba-enredo de sucesso em 1993. Dois dos astros da escola da Baixada Fluminense, o puxador Wander Pires e o mestre de bateria Odilon, começaram o desfile atraindo o público. No setor 3, a maioria das pessoas fingiu não ter interesse pela enxurrada de artistas à frente da escola (Miguel Falabella, Raul Gazolla, Luiz Fernando Guimarães, etc). A entrada do belo samba que falava das riquezas minerais brasileiras empolgou o público, que ficou dividido com a comissão de frente da escola (de homens de tapa-sexo com os corpos pintados de acordo com minerais preciosos) e deslumbrado com o abre-alas do carnavalesco Joãosinho Trinta. Pena que parou aí. As alegorias do consagrado profissional maranhense (que chegaram ao cúmulo de mostrar um homem sendo executado na cadeira elétrica) foram tirando o ânimo do público, que também desistiu de cantar o samba, que ia se tornando mais lento a cada passagem. Nem Luciana Gimenez salvou a Grande Rio. Mais uma vermelho-e-branco, mais expectativa: a Viradouro, que homenageava a atriz Bibi Ferreira, chegou grandiosa, com um abre-alas representando teatros de arquitetura clássica, e com a dupla Dominguinhos do Estácio e mestre Ciça (originalmente também do Estácio) afiada. Além de Luma de Oliveira à frente da bateria, é claro, e Deborah Secco um pouco adiante. Mas o povo do setor 3 (já desfalcado dos japoneses, que, fatigados, foram embora depois do Salgueiro) não ligava muito para madrinhas ou coreografias de bateria. O samba da escola teve boa resposta do público, e o trabalho do carnavalesco Mauro Quintaes foi quase tão elogiado quanto o de Renato Lage. A entrada de Bibi, no último carro, arrancou aplausos e concluiu o que foi, possivelmente, o desfile mais correto da noite. As frisas do 3 já estavam bem desfalcadas quando o Império Serrano apareceu com seu incompreensível “Onde houver trevas, que se faça a luz”. Embora o samba, de autoria de compositores como Arlindo Cruz e Aluísio Machado, tenha tido boa resposta, a escola foi uma das que obtiveram a reação mais fria da noite. A comportada modelo Suzana Werner e seu marido-guarda-costas-goleiro-do-Flamengo Júlio César atraíram alguns olhares, assim como a comissão de frente, que trazia um integrante de patins. Os efeitos luminosos da escola não funcionaram bem, e apenas a garra de algumas alas, mais para o final, evitou que o êxodo fosse ainda maior no setor 3. Embora visualmente correta, e contando com puxador (Jackson Martins) e a irregular bateria em uma bela noite, a Caprichosos de Pilares foi ignorada pela maioria do público ainda presente às frisas do setor 3. Um grande número de pessoas permaneceu sentado, conversando e dando uma eventual olhada na escola, em destaques como a modelo-clone Ângela Bismarck e a madrinha de bateria Nana Gouvêia. Em um desfile de domingo (tradicionalmente assombrado pela maldição que faz com que as escolas, sem muita esperança de ganhar, não desfilem com toda a garra, o que acaba contagiando o público), a sexta posição pode ser ingrata, se não estiver com uma escola com um grande trunfo na manga. Quem ficou até o fim da Caprichosos e viu o dia raiar na avenida recebeu uma injeção de ânimo quando viu a águia da Portela: o puxador Gera, acompanhado com brilho pela bateria, esquentou com “Portela na avenida”, sucesso da cantora Clara Nunes, levantando o combalido setor 3. Quem estava sentado se levantou e cantou em altos brados o samba de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte. Com o público quente, Gera e a bateria entraram de cabeça no samba-enredo sobre a Cinelândia, que foi automaticamente adotado pelo povo das frisas do 3. O público pulou e improvisou coreografias por mais de meia hora, até a saída da bateria do primeiro recuo. Foi a melhor reação da noite, mostrando que alegorias corretas (embora não comparáveis às de escolas como Salgueiro e Viradouro) e um bom samba são mais do que suficientes para empolgar os cariocas (talvez algum turista brasileiro, mas já não havia sombra de gringos no setor 3 às 6h da manhã). O povo guerreiro que agüentou até o fim saiu recompensado da Sapucaí: a Portela salvou o domingo. |
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Bernardo
Araújo Publicada no Jornal O Globo em 04 de março de 2003 (É jornalista do Jornal O Globo e crítico musical) |
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