Trem do Samba

 

            Falando da festa que rolou da Central até Oswaldo Cruz (pelos comentários, parece que a grande festa do samba efetivamente aconteceu lá e não em Botafogo), foi incrível ver o povo reunido e cantando em cada composição, em cada vagão, as várias vertentes do samba. Tinha samba-canção, samba-enredo, samba-exaltação, etc. Isso sem falar nos afins: choro (Pixinguinha, claro, também passou por lá, e até um solitário violonista tocando Jacob do Bandolim). Mas o que agitou mesmo nos vagões até Oswaldo Cruz foi o pagode. E como deu Tia Doca ontem, hein !!!!
            Agora, o mais interessante de tudo foi a chegada a Oswaldo Cruz. Quando desembarcamos, estava chovendo. Ora, nada mais oportuno para puxar o clássico da Velha Guarda da Portela "A chuva cai lá fora / Você vai se molhar . . ." (emocionante !). Como se tudo isso não bastasse, decidimos inicialmente pelo lado mais "calmo" da linha do trem, oposto ao lado das barraquinhas (para quem não sabe, ficamos do lado da Carolina Machado). E ficamos na esquina de qual rua ? Da rua Adelaide Badajós, que, digamos, é a rua onde tudo ou quase tudo começou (Tia Estér, Tia Neném . . .): lembranças de um cotidiano do passado que eu não vivi, mas, não sei como, trago comigo.
            Bem, nesse bar encontramos o pessoal da Serrinha que numa tal hora começou a tocar um jongo atrás do outro. Jongo puríssimo da melhor qualidade. O mais interessante: tudo isso feito por gente jovem, vinte anos na média. Foi legal ver a continuidade das tradições. Foi uma prova de que para se inovar é indispensável conhecer, com um mínimo de profundidade, as tradições. Naquela hora, me veio tanta coisa na cabeça: o canto das lavadeiras ribeirinhas, o Recôncavo Baiano e Santo Amaro da Purificação, o caxambu e a Zona da Mata Mineira, Clementina de Jesus e o interior do estado do Rio, São Luís do Maranhão e o Tambor de Crioula, etc.
            Depois desse vendaval no pensamento, concluí tudo num só lugar: Oswaldo Cruz, claro ! Ainda que o jongo seja uma manifestação mais fortemente presente (ou só presente) num lugar difícil de definir se ainda é Vaz Lobo ou se já é Madureira, mas que é facilmente identificável por Morro da Serrinha, a impressão que me deu (posso estar enganado, mas se estiver peço desculpas, porque agora prefiro a emoção à razão) é que só em Oswaldo Cruz é possível toda essa reunião de ritmos e modos de vida. Talvez em um outro ponto do Rio de Janeiro isso aconteça também, mas de maneira tão natural . . . muito difícil. Verdadeiramente, Oswaldo Cruz é lugar de resistência cultural. Uma pena que atualmente só seja lembrado no dia 2 de Dezembro.
            Eu, ontem, reunindo tudo o que me impressionou os sentidos (os cheiros, sons, gostos, abraços e cores), tive certeza de que se a Portela tivesse sido simplesmente criada, isso até que poderia ter acontecido em outro lugar da cidade do Rio, mas como a Portela foi inventada, somente um lugar do Rio reunia as condições naquele outono - estação dos frutos - de 1923: Oswaldo Cruz.

 

Vanderson Lopes
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