Eu não sou neguinha

             Moro no Rio, amo o Rio e a simples presença da praia na minha rotina me torna um sujeito mais feliz. Não freqüento a praia porque me incomoda aquela areia no fundo da sunga. Não gosto da sensação de estar à milanesa. Vou à praia com a assiduidade com que aumentam o salário mínimo. Uma vez por ano e bem pouquinho.
Pra ilustrar ainda mais minhas características alienígenas, sou paulista.
         Sou branco de doer e danço samba com a naturalidade de um jabuti embriagado. Portanto, o que me aconteceu  ontem tinha tudo pra dar errado: - fui convidado para um ensaio da Portela. Grêmio Recreativo Escola de Samba da Portela. E, sabe lá Deus porquê, fui; bem desconfiado.
         Cheguei e a coisa ainda não tinha pegado no breu. Paulista chega cedo. Tinha lá um ótimo conjunto no palco, tocando samba, tocando samba. Muitas mesinhas vazias e (ah), eu não bebo. Tentei várias vezes descobrir as delícias da cerveja, sem o menor sucesso. Um ingrediente a mais a colaborar na receita de uma noite fracassada.
         Os minutos foram passando e eu, tonto de samba, olhava as  figuras que chegavam e, quase negligentes, mostravam, esquentando o passo, que samba é pra quem pode, não pra quem quer.  Meus pés envergonhados  batiam no chão, buscando o ritmo da música. Não corre em minhas veias uma única gota do molejo do samba. Curiosamente, lembro de alguns sambas-enredo. Todos da Portela. A homenagem a Pixinguinha é clássico de nem sei quantos anos atrás.
         Aos poucos foram se reunindo os caras com os instrumentos. Era o pessoal da bateria.  Gente simples. Uma simplicidade só possível para quem conhece o  seu valor. A arrogância é fruto da insegurança.
         Quando o Mestre  tocou o apito convocando o pessoal, aconteceu um milagre em mim.  O jabuti  foi contagiado, eletrizado, eletrificado pela música. De repente, a quadra da Portela viu um branquelo doido, careta e sóbrio sambando, como só os jabutis são capazes. Pra lá e pra cá, ia eu, pagando um Godzila pra galera.
         Teria incluído mais esse King Kong no meu vasto rol, não fosse a generosidade da moçada. O Mosquito que, eu, pouco antes, vira dando um showzinho pra si próprio, lá no canto, aproximou-se. Acredite se quiser. Um dos maiores passistas do Rio de Janeiro me tirou pra dançar. Em transe e honrado, aceitei. E fomos nós, pela quadra. Mosquito é de dar nó nas pernas. Vai dançar bem assim lá na Sapucaí, rapaz!
         Como uma deusa, caída dos céus, juntou-se a nós uma mulher que sequer perguntei o nome - nunca vou me perdoar por isso. O que era aquilo? Um vulcão ou um terremoto? Nela estavam reunidas todas as belezas da biologia, da geografia e da arte. Não dá pra descrever aquele sorriso e aqueles pés que transmitiam ebulição ao corpo todo.
         Tudo ali era prazer e aconchego. Cercado pela generosidade de Mosquito e da Terremoto, eu era plenitude. Abriu-se uma pequena roda de perplexidade à nossa volta. Eu abri uma cerveja e tomei. Cheguei até a gostar. A verdade é que me vi rodeado de tanto afeto que todos os rostos pareciam me dizer: "É isso aí, meu filho! Solta a franga. Vai fundo!"
         As crianças corriam e dançavam pela quadra, o samba comia solto, a marmanjada - (que conhece bem o prazer da cerveja) -  mandando ver. Tudo na paz em Madureira.
         A porta-bandeira e o mestre-sala  me ofereceram a Bandeira, que eu beijei. Mosquito me presenteou com seu simpático barrete autografado, para o qual estou olhando agora, aqui, na calma previsível de minha mesa de trabalho. A presença do chapeuzinho me confirma que a experiência foi real, embora cheia de fantasias.
         O fato é um só. Não sei se algum dia conseguirei sambar decentemente, mas de uma coisa eu tenho certeza. Ganhei uma coisa nova em minha vida. Em relação ao samba, eu, antes, não era nada. Agora, eu sou Portela até morrer.

21 de julho de 2002.

 

Giuseppe Oristanio
(
É ator da Rede Globo de Televisão)
Artigo originalmente publicado na HP Oficial da G.R.E.S. Portela

 

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