O iogurte do carnaval paulista

 

          Juro que estou tentando mudar de assunto, mas meus 17 leitores não deixam. Desde que critiquei o enredo da escola de samba Porto da Pedra para o próximo carnaval, não tem outro assunto na minha caixa postal.
          “Não seja cínico e debochado”, me diz Magali Anconelli Dall Osso. “A Porto da Pedra é a escola de uma comunidade pobre e feliz. Eu digo isso porque estive no seu barracão, no sábado passado, para a Feijoada da Família. Que feijoada! Que comunidade!”
          Com todo respeito a Magali, nunca duvidei da qualidade da feijoada da Porto da Pedra. Nem do ser humano que forma sua comunidade. Duvido apenas do bom gosto de seu enredo sobre iogurte. Mas sei que isso não é exclusividade da agremiação de São Gonçalo. Em São Paulo, por exemplo, a Rosas de Ouro vai cantar... Roberto Justus! É isso mesmo. Para a escola de Brasilândia, Roberto Justus dá samba.
          Tecnicamente, a escola vai homenagear “a Hungria e seus imigrantes”. Mas, como o publicitário é filho de húngaros, aproveitou para fazer isso “por meio de um dos mais ilustres representantes dessa comunidade em São Paulo”. O “ilustre representante” aparece até no título do enredo: “O reino dos Justus”. Ele mesmo estará na Avenida representando o rei Mattias Cervinus, o justo. A escola justifica a escolha do apresentador de TV: “Ele é um guerreiro que, como seus ancestrais, travou muitas batalhas para conquistar seu lugar ao sol e erguer seu próprio reino.”
          A letra do samba-enredo de Jairo, Fernando Sales, Tadeu e Rodrigues explicita toda essa importância: “E no Brasil um ser de luz nasceu para brilhar, um lindo conto assim se fez, Justus o menino-rei.” Depois dessa, me responde: Roberto Justus é ou não é o iogurte do carnaval paulista?
          A encrenca em que me meti ao rememorar o “Samba do crioulo doido”, de Sergio Porto, também está rendendo mensagens. Depois de eu mudar o título para “Samba do afrodescendente doido”, leitores me criticam, lembrando que “doido” também não é politicamente correto.
          De Belém, do Pará, Eliezer Alves Rodrigues, propõe nova troca de título: “Samba do Afrodescendente com Sérias Deficiências Culturais e de Aprendizado Devido à sua Condição Social Decorrente da Marginalização que o Povo de sua Raça Sofreu Desde o Advento da Escravidão no Brasil.” O título proposto pelo leitor é praticamente um samba-enredo completo. Foi aprovado!
          Assim como um enredo mal escolhido prejudica a expectativa do desfile, quando o tema é bom, a escola já entra no Sambódromo com meio caminho andado. Para ninguém dizer agora que estou sendo preconceituoso com o samba paulista, cito a Águia de Ouro que, este ano, vai mostrar “Tropicália da paz e do amor — O movimento que não acabou”. No sábado, 18 de fevereiro — já se sabe que o carnaval de São Paulo é antes do carnaval —, a Águia de Ouro pode contar com minha audiência. Texto

Artur Xexéo
(Publicado originalmente na Revista O Globo em 22 de janeiro de 2012)

 

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