Nós, nós os alegres

 

No carnaval, que me perdoem os triste, mas alegria é fundamental

          Aos triste os retiros, os hoteizinhos tranquilos nas serras, os capítulos das novelas, o noticiário das guerras mundiais e das batalhas locais. A eles o vinho tinto à temperatura ambiente, o lugar quente na cama e o sono reparador. A essa gente consciente do ridículo carnavalesco o gozo de uns dias de férias longe dos burburinhos e o prazer de estar aproveitando cada minuto daquilo que os outros desperdiça no carnaval.
          Os outros somos nós, os irremediavelmente alegres, os que sabemos o trabalho danado que dá manter esse sorriso carnavalesco, mas que acreditamos valer a pena o sacrifício. Apesar da dor na perna, do incômodo na garganta, do confete na boca e da cerveja quente, continuamos de pé, vigiando o mundo e impedindo que o caos da normalidade inunde a cidade e tome conta, definitivamente, do universo. Somos ilhas de alegres abnegados cercados de vida cotidiana por todos os lados e unidos por uma certeza: cariocas, recifenses, soteropolitanos, gaúchos, paulistanos e brasileiros em geral temos a segurança de que formamos um grupo de eleitos, de condenados à felicidade. Nosso dever, nossa missão é assistirmos durante metade do ano aos ensaios dos blocos, é comprarmos os abadás dos trios, é enfeitarmos as janelas de nossos sobrados para vermos passar as forças, é comparecermos aos ensaios das bandas, é experimentarmos as fantasias das escolas de samba, trazendo o Bafo da Onça gravado em nossos corações. Durante os meses não-carnavalescos, enquanto trabalhamos junto com os tristes, nós, os alegres, só pensamos naquilo, na nossa verdadeira missão. A grande pergunta, a dúvida transcendental que resume todas as dúvidas, a questão que nos faz ultrapassar um ano inteiro de espera, continua sendo "Será que a Portela vai, finalmente, ganhar o carnaval?". Quanta angústia e quanta alegria se concentram em algo aparentemente tão banal. Quantos chopes foram tomados em quantos bares em torno da essência crucial contida nesta interrogação. SE você é carnavalesco compreenderá que dela depende todo o futuro da humanidade. Não da pergunta em si mesma, mas do fato de ela poder existir. Enquanto houver a possibilidade de nos preocuparmos com isso, haverá esperança para o mundo. Por pior que esteja a situação planetária, nada pode ser mais importante do que sabermos quem roubou a mulher do Rui. Eu juro que não fui. Nossa alegria teimosa, nossa fixação nos detalhes mais ínfimos da métrica de um samba-enredo, ou no roteiro de um trio, ou no a acabamento de bordados de uma fantasia, nossas obsessões, enfim, são o que nos colocam no lugar de guardiões da felicidade do mundo. Isto não significa manter tradições ou estabelecer regras para o carnaval. Ao contrário! Somos bigorrilhos fazendo mingau, preservadores das transgressões, cultivadores das tensões, incentivadores das confusões, sentinelas de tudo aquilo que não tem função mas está cheio de sentido como uma mulata bossa nova caindo no hully gully.
          Nosso carnaval, para horror dos triste puristas, não são as manifestações populares, nem as escolas de samba, nem as bandas ou os camarotes baianos, posto que tudo isso são apenas formas de brincar. Formas que se compram, se vendem, se copiam, se exportam e se importam. Formas que dão forma ao carnaval mas que não são o carnaval. Carnaval é esse sentimento que possuímos - nós, os alegres - uma missão. Que cabe a nós mostrarmos que existe um outro lado do mundo. Que podemos ser felizes. Que temos que ser felizes. Que sofremos, se for necessário, para continuarmos a ser felizes. Que nossa felicidade não é sermos felizes mas podermos mostrar aos outros, os tristes que alegria é possível. Que a vida dura só um dia, Luzia, que não se leva nada desse mundo.
          Gostar de carnaval é um dever cívico, um sofrimento gozoso, um sacrifício ritual de nossa própria paz no altar de um deus pagão ou de um deus pagode.
          Aos tristes a alegria de não compreender a importância deste momento, de tomar chá com torradas em vez de parati, de poder descansar sua triste cabeça num triste travesseiro e dormir feliz enquanto a banda passa. Aos alegres a tensão de passar com a banda, de chorar com ela, de descer a ladeira com o trio da Mangueira, de dedicar sua alma a uma felicidade tão passageira que nem parece importante mas que sabemos ser tão essencial para equilíbrio planetário quanto a disputa entre as máscaras de Bush e de Saddan num subúrbio de Recife.
          As tristes a felicidade da vida diária. A nós, aos alegres, aos sentinelas, a tristeza cheia de esperanças de um mascarado dormindo na calçada em frente ao banco e a feliz certeza de que qualquer ano desses a Portela virá pela madrugada, pela Avenida toda iluminada e ganhará o carnaval e de que vamos chorar de alegria. mesmo sendo, como eu, Imperatriz de coração.

Felipe Ferreira
(Publicado Originalmente no Jornal O Pasquim em 04/03/2003)

 

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