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Como um pastor protestante dos anos 1930 agiria ao flagrar um de seus filhos enrabichado pelo batuque carioca? E, para piorar as coisas, ainda escolhesse por companhia gente como Mestre Fuleiro, Olímpio Navalhada e Mano Elói, jongueiro e pai-de-santo respeitadíssimo nos arredores? "Meu avô expulsou papai de casa quando ele entrou para o samba", rebobina Silas dos Santos Assumpção, mais conhecido como Silinhas de Oliveira, que só pelo nome já deixa claro sobre quem gira essa prosa: o grande Silas de Oliveira, fundador do Império Serrano e autor de 14 sambas-enredo que incendiaram os quadris da comunidade, entre eles um dos mais famosos de todos os tempos, o ufanista "Aquarela brasileira", quarto lugar do carnaval de 1964. Reza a lenda que este samba foi a resposta de Silas aos autores rivais, que o difamavam, espalhando que não sabia compor sozinho.
Silinhas ficou órfão de pai aos oito anos e lembra de poucos episódios da infância vivida ao lado do sambista. "Ele sempre levava a gente para a Festa da Penha, para a quadra do Império e também fazia questão que a gente estudasse muito", recorda. Pudera. Silas era professor, com passagem pelo Colégio Assumpção, criado pelo pai, José Mário. "Ele ensinava de tudo, era um homem culto que lia Shakespeare, ouvia música clássica e, naturalmente, muito samba. Escutava também a Hora do Brasil para se manter atualizado. Era um sujeito tranqüilão", diz o herdeiro. "Bebia e fumava. Boêmio com certeza, mas sempre voltava para casa. De vez em quando aparecia bem legal", diz o ourives e ritmista, penúltimo de nove filhos do casal Silas e Elane. "Em vida, ele viu dois filhos falecerem. A segunda foi a Nanci, aos 15 anos. Foi quando ele escreveu 'Me leva', em parceria com José Garcia e Anísio Silva".
Nascido no subúrbio de Madureira em 4 de outubro de 1916 - na rua Maroim, rebatizada para Rua Compositor Silas de Oliveira -, o sambista mudou-se para Vaz Lobo em 1944, quando trocou alianças com dona Elane, sua companheira de toda vida. As finanças dos Oliveira eram magras. "Meu pai vendeu muitos sambas por necessidade". O lazer da família incluía longas visitas à casa do baiano Mano Décio da Viola - parceiro de sua primeira música ("Meu grande amor", de 1934) e de dois sambas-enredos que entraram na história do carnaval: "Tiradentes" (1949) e o polêmico "Heróis da liberdade" (1969), que levou a dupla às temidas salas do DOPS. O General França queria saber, da boca dos autores, quais eram suas reais intenções ao escrever o trecho que diz: 'essa brisa que a juventude afaga/ essa chama do ódio não apaga/ pelo universo é a evolução / em sua legítima razão' - o militar temia que o povo substituísse 'evolução' por 'revolução' - e Silas foi firme: "Eu
não tenho culpa de retratar a história. Não fui eu que a escrevi. Como eu fiz, o senhor poderia ter feito".
Quando retornaram a Vaz Lobo, a turma não perdoou: "Ei, malandro! Subversivo, hein?". Silas ficou quieto, mas se queixou com Mano Décio: "Operário não pode ter ideologia...". O fato é que "Heróis da liberdade" ganhou zero em todos os quesitos na votação da ala dos compositores. "Meu pai nunca reclamava de nada, mas um compositor como ele não merecia isso", desabafa o herdeiro. Foi assim que 1969 marcou o último carnaval que o Império Serrano cruzou a avenida com uma composição de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola - regravado, neste mesmo ano, por Elza Soares no vinil Elza, carnaval & samba. A obra "ganhava fervor cívico quando cantado nas rodas cariocas daquela época, dos subúrbios ao Teatro Opinião", segundo escreveu o jornalista Roberto M. Moura no livro Carnaval: Da Redentora à Praça do Apocalipse (Zahar, 1986). Elza homenagearia o compositor em 1977 ao registrar "Perdão Vila Isabel" (parceria dela com Gerson Alves) no álbum Pilão + raça =
Elza.
Obra de Silas foi cantada por bons intérpretes
A obra de Silas de Oliveira, aliás, sempre esteve bem servida de intérpretes. "Heróis da liberdade", por exemplo, também foi regravada por Jair Rodrigues (1971), João Nogueira (1972) e Jorginho do Império (1973), filho do co-autor Mano Décio da Viola, que o registrou em 1974, mesmo ano de Jorge Goulart, seguido por Beth Carvalho (1975) e alguns outros, antes de João Bosco (1993). "Apoteose ao samba" ganhou novas versões de Jamelão (1975) e Paulinho da Viola (1978). O clássico "Aquarela brasileira" emprestou duas palavras do primeiro verso ao nome do disco de Martinho da Vila em 1975, Maravilha de cenário, e foi revisitado à exaustão, inclusive pelos costumeiros Roberto Ribeiro e Elza Soares e por um inesperado Neguinho da Beija Flor, que a incluiu no roteiro de Felicidade (1990).
Cantado por Elizeth Cardoso e executado pelo trombonista Raul de Barros, "Meu drama" entrou no segundo long-play de Cartola (1976) com o título de "Senhora tentação" ('Sinto abalada minha calma/ Embriagada minha alma/ Efeitos da tua sedução/ Oh! Minha romântica senhora tentação/ Não deixes que eu venha a sucumbir/ Neste vendaval de paixão'). "Houve uma época em que Silas e Cartola trabalharam no Cais do Porto, na função de conferentes. Imagina quantos sambas eles não fizeram juntos e que não foram anotados em lugar nenhum?", indaga o filho, narrando mais duas histórias que revelam um pouco mais da personalidade deste sambista genial.
"Meu pai tinha uma cabeça muito aberta. Eu e meu irmão João Mário gostávamos de ficar sentados na janela da sala, apreciando o movimento da rua. Era no quinto andar do prédio e minha mãe reclamava por causa da altura. Sabe o que meu pai fazia? Virava para a mamãe e dizia: 'Elane, eles vão ficar aqui quietinhos, não é meninos?' e a gente ficava mesmo - isso com 3 e 4 anos - acho que para honrar aquele voto de confiança", recorda. "Mamãe ficava muito triste quando lembrava que tiraram a fantasia do meu pai num carnaval, logo ela, a costureira da primeira comissão de frente da escola, em 1947". E agora, quando se completam 60 anos do Império Serrano, o herdeiro quer lançar um disco com o repertório de Silas - dos 150 sambas que deixou, 30 deles permanecem inéditos. "Penso em convidar os puxadores para valorizar o intérprete de samba-enredo", adianta, com exclusividade, ao Jornal Musical.
Em 1970, portanto dois anos antes de morrer, Silas ajeitou os móveis na boléia de um caminhão e foi morar na Penha. "Lembro de muita coisa daquela época que não existe mais: as baianas que vendiam quitutes na festa, a barraca do Zacarias e a confraternização dos sambistas no terceiro domingo do mês", enumera o filho, revirando seu baú de lembranças da família. "Ele era elegante, super exigente. Só andava de terno. E gostava de servir. O Rubens Confete me contou de uma noite de samba que ele nem quis chegar perto da música. Ficou apenas servindo os amigos". Entre os amigos não constam aqueles que o deixaram na mão quando precisou de um dinheiro para quitar uma mensalidade da filha Elenice (é ela quem cuida hoje dos direitos autorais e do acervo do pai), na época estudante universitária do curso de letras.
"Eram 30 cruzeiros, equivalente a uns R$ 500 atuais. Meu pai foi à editora(Irmãos Vitale, segundo o jornalista Tarso de Castro, em coluna publicada no jornal Última Hora um ano depois da morte do sambista) e pediu para adiantarem essa quantia. Negaram a ajuda. Então, ele foi muito triste para a roda de samba do Clube ASA, em Botafogo, a convite de Mauro Duarte. Cantou um, dois, três sambas. Parece que o último foi 'Meu drama'. Foi se sentar perto de um amigo, deu um abraço forte nele e morreu ali no palco mesmo, de infarto, em 22 de maio de 1972. O pior é que no dia seguinte essa mesma editora mandou três coroas lá para o velório, na Associação das Escolas de Samba - cada uma no valor que ele tinha pedido adiantado", esmiúça Silinhas. Por sugestão de Natal da Portela, que era da família, Silas de Oliveira foi enterrado sob os versos do samba "Heróis da liberdade", que desde então passou a ser cantado no sepultamento dos sambistas de valor. |