Cadeira vazia

 

“Entra, meu amor, fica à vontade
E diz com sinceridade
O que desejas de mim....”

          As composições de Lupicínio Rodrigues representam uma das coisas mais ternas e violentas da música popular brasileira. Como ele consegue ser terno e violento ao mesmo tempo?
          Não é simples. Sobre um terreno de relações desiguais, do homem imperando sobre a mulher, de relações portanto violentas, Lupicínio constrói um mundo cheio de terna compreensão para o homem que ama. E que sofre, quando rejeitado, sem abdicar jamais de uma posição que se deseja altiva.

“... Entra, podes entrar, a casa é tua
      Já te cansaste de viver na rua 
      E os teus sonhos chegaram ao fim 

      Eu sofri demais, quando  partiste
      Passei tantas horas triste
      Nem quero lembrar esse dia 

      Mas de uma coisa podes ter certeza 
      O teu  lugar aqui na minha mesa
      Tua cadeira ainda está vazia  ...”

          Observe-se, nesta música, que o amante jogado a um canto por outros é afinal procurado pela mulher que o abandonou. Ela parece chegar  de mansinho, meio  envergonhada, sem  ousar cruzar a porta  da casa que não mais é sua.
          Para entrar, ela espera e precisa do convite do soberano, do soberano que, durante o tempo de abandono assistiu de camarote às lições que a ingrata levou. Até não parece o recebimento de uma amorável cadela fugida?  Coisa muito terna, mas desigual, em planos diferentes, pois a casa é dele, e ela é quem o procura.
          Então ele se faz paternal, concede,  diz-lhe que entre, que a casa é sua, suaviza com um “meu amor”, para lhe mostrar que não é uma estranha. Poderia ainda dizer-lhe: “sei que erraste, mas como sou um bom pai, não insistirei nos teus erros”.

“... Tu és a filha pródiga  que volta
       Procurando em minha porta
       O que  o mundo não te  deu

       E faz de conta que sou teu paizinho
       Que tanto tempo aqui ficou sozinho
       A esperar por um carinho teu 

       Voltaste, estás bem, estou contente
       Só me encontraste muito diferente
       Vou te falar de todo o coração 

       Não te darei carinho nem afeto
       Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto
       Pra te alimentar, podes  comer meu pão”

          À primeira vista há o prazer da vitória sobre quem o magoou,  quase uma vingança.  Por trás, no entanto,  há um queixume de quem se acha ter amargado uma injusta solidão.  Como é homem, não chora, nem se deixa abrir numa queixa: recebe-a de volta, soberanamente. Recebe-a como quem  retoma um bem roubado, é coisa sua mesmo.
          O detalhe que surge e toma corpo nesse discurso de senhor e escravo é a cadeira vazia. Ninguém a havia ocupado. Durante toda sua ausência ela se fez presente naquela cadeira. Esse detalhe trai.
          E sentindo-se descoberto por esta fraqueza, eis que volta o Senhor  com um  novo embuste: proclama, altaneiro, que não lhe dará carinho nem afeto. Chega  a ser cômico. Há ternura demais nessa vingança de cadeira vazia e jejum de afeto.

“ Quantas noites não durmo
   A rolar-me na cama
   A sentir tanta coisa
   Que a gente não  sabe explicar quando ama

   O calor das cobertas
   Não me aquece direito
   Não  há nada no mundo
   Que possa afastar esse frio do  meu peito...”

          Evidentemente, não foi Lupicínio o inventor da dor-de-cotovelo. Mas dele pode-se dizer que pôs muita dignidade num sentimento amesquinhado em penosos bolerões.
          Essa dor causada, tão mal vivida em músicas que, do sofrimento de quem ainda ama, só vêem a rabugenta lamúria, ganhou em Lupicínio  uma nova luz.
          Normalmente as canções do gênero, quando não prometem à infiel um passional desenlace, mostram um pobre desgraçado arrastando-se aos pés da amada, pleiteando um amor impossível.
          Em Lupicínio, não.  A  relação amorosa  já existiu, não mais existe, ponto comum da dor-de-cotovelo.  Mas  o que acontece? Ele narra o próprio sofrimento, retrata  o  estado em que se encontra, sem que  esse retrato nos  leve ao sentimento da piedade.
          Enquanto nos outros sofredores por eles só sentimos pena, na  mágoa expressa de Lupicínio sentimos uma profunda empatia, casada a uma certa admiração por seu torturante heroísmo. Ele jamais é o coitado, embora sofra.

“ ... Volta
       Vem viver outra vez ao meu lado
       Não consigo dormir sem teu braço
       Pois meu corpo está acostumado”

          Ele tem o talento da expressão mais rude, bruta, direta. Não há rodeios, falsas sutilezas, o sabor encantatório  de certas palavras tidas como poéticas.
          Há o verso definidor de uma situação pressentida por todos, mas não ainda conhecida, porque ainda não enunciada:  “ não  consigo dormir sem teu braço, pois meu corpo está acostumado”.
          E há o grito de dor, que  é o  remédio  certo para a aflição: “Volta” .  Sem esta curta palavra, no ápice da canção, é de se observar que ele corria o risco de cair  no banal.
          Ou seja, ele não é apenas o poeta que tem um mundo de visões agitando-se dentro de si, e que faz da composição um decalque desse rebuliço. Lupicínio é um artesão que põe ordem no caos das visões que deseja ver conhecidas.
          Daí a ilusão do “lugar-comum incomum”. Lupicínio sabe  que todas as palavras já foram ditas, que todas elas, em si,  são  lugares-comuns, mas que a verdade corporificada nas palavras é absolutamente original.

“ Você sabe o que é ter um amor,
    Meu senhor?
    Ter loucura por uma mulher
    E depois encontrar esse amor,
    Meu senhor,
    Nos braços de um tipo  qualquer?

    Você sabe o que é ter um amor,
     Meu senhor,
     E por ele quase morrer 
     E depois encontrá-lo  em um braço
     Que nem um pedaço do meu pode ser?"

          Nesta música, de 1947, ele se expõe numa situação vulgarizada até o riso, a do homem que é testemunha do ato de sua substituição por outro. Lupicínio nem dá de ombros como no moderno sentimento, nem toma ares de vítima.
          Ele nos convida para um mergulho no seu problema, interrogando-nos se sabemos o que é ter um amor, se sabemos, se por isto já passamos, como é duro  encontrá-lo em outros braços que não os  nossos.
          A situação é bem velha. Velha não é a coragem de confessar essa  experiência, ou, se confessa, o evitar a  queda na vala comum  do ridículo.
          O que faz Lupicínio? Com interrogações a nós dirigidas, rasga de imediato o nosso confortável papel de assistentes, porque o conteúdo destas interrogações é saber se já tivemos um amor. Quem não? De voz embargada reconhecemos nele o nosso forçado intérprete.

“ Eu gostei tanto
   Tanto quando me contaram
   Que lhe encontraram
   Chorando e bebendo
   Na mesa de um bar
   E que quando os amigos do peito
   Por mim perguntaram
   Um soluço cortou sua voz       
   Não lhe deixou falar

   Ai, mas eu  gostei tanto
   Tanto quando me contaram
   Que tive mesmo que fazer esforço
   Pra ninguém notar

   O remorso
   Talvez seja a causa do seu desespero
   Você deve estar bem consciente do que praticou
   Me fazer passar essa vergonha com um companheiro
   E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou

   Mas enquanto houver força em meu peito
   eu  não quero mais nada   
   Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar ...”

          E aqui retornamos ao ponto de partida. O amante desprezado regozija-se da má sorte que acompanha os passos de quem o deixou. Vingança? Ou somente desfrute perverso da paixão que fica no lugar do antigo amor?
          O nome mais apropriado deveria ser castigo, imposto pelo amante não correspondido. Coisa de soberano.
          Um castigo imposto mediunicamente a distância. Um castigo em  termos, que não destrua o objeto amado.

“  ... Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada
         Sem  ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar”.

          Na verdade, a cadeira ainda está vazia. O orgulhosos médium aguarda-a,  soberanamente. Superiormente compreensivo.

      “ Entra, meu amor, fica à vontade
         E diz com sinceridade
       O que desejas de mim

         Entra, pode entrar, a casa é tua
        Já te cansaste de viver na rua 
        E os teus sonhos chegaram ao fim 

       Eu sofri demais, quando  partiste
       Passei tantas horas triste
      Nem quero lembrar esse dia 

   Mas de uma coisa podes ter certeza 
    O teu  lugar aqui na minha mesa
    Tua cadeira ainda está vazia

    Tu és a filha pródiga  que volta
    Procurando em minha porta
    O que  o mundo não te  deu

   E faz de conta que sou teu paizinho
   Que tanto tempo aqui ficou sozinho
   A esperar por um carinho teu 

  Voltaste, estás bem, estou contente
  Só me encontraste muito diferente
  Vou te falar de todo o coração 

  Não te darei carinho nem afeto
  Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto
  Pra te alimentar, podes  comer meu pão”

Urariano Mota
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
(Publicado originalmente no site Comunique-se)

 

Artigos