O chão nosso de cada folia

 

          Comecei a viver o carnaval pela televisão mesmo. Nunca fui o que se pode considerar um folião na mais profunda das acepções do termo, até porque nasci no período de decadência dos grandes bailes, quando as velhas marchinhas executadas nos salões dos clubes já estavam com os seus cabelos embranquecidos. Ou seja, me apaixonei, primeiramente, pelo espetáculo que passava na tela da Philco hoje aposentada. Um começo, vamos combinar, pouco romântico para quem vê tanto romantismo no festejo de todo fevereiro-março.
          E o que mais me chamou atenção, logo no início, foi a figura dos passistas. Durante carnavais e carnavais ficava à espera do recuo das baterias somente para vê-los passar logo a seguir. A clássica imagem do bom e velho pandeiro que rodopia por sobre o dedo indicador, ou então em cima de outro, o chamado “pai de todos”, sempre foi o recorte cênico que me fazia remeter aos desfiles em pensamento. Recorte emoldurado pelo rebolado de grandes mulatas, pelo sorrisão do sambista no fazer de sua arte, por um tipo de essência foliã que não se explica com racionalidade.
          Lá se vão mais de quinze anos desde a minha espécie de “estalo de Vieira” com relação aos passistas, e mergulhando nos versos de Chico Buarque em “Vai Passar” – “Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais / que aqui sagraram pelos nossos pés / que aqui sambaram nossos ancestrais”, tornei a pensar neles. Pensar no ofício a que dão asas, e, a partir daí, na importância que o “chão” desempenha nos desfiles das escolas de samba.
          “Chão” este no sentido físico, literal, a avenida propriamente dita, assim como também na visão de alegria fluida de algumas apresentações, e tantas outras variações. O carnaval é dependente de todas as conotações de chão que se possa imaginar. Ele é o próprio chão. As escolas se descobriram e se criaram no rasgar do asfalto, no emaranhar cadenciado dos pés ao som de uma bateria, desenhando uma relação indissociável.
          O suceder dos anos e as mudanças conceituais e estéticas a que assistimos na Sapucaí, notadamente, a partir da década de 1990, produziram um enxugar nas alas de passistas, que, além de tudo, passaram a desfilar a mil por hora. Nas transmissões de hoje em dia, por exemplo, é mais difícil que encontremos os preciosos minutos de samba no pé com o selo “comunidade” de qualidade. E aí, no rabo deste foguete, aquelas tais imagens que me sensibilizaram ainda moleque, talvez não mais sensibilizem alguns outros...
          Em março de 1973, a Revista Manchete publicou o seguinte comentário sobre Paula do Salgueiro, considerada a maior entre todas as passistas: "(...) não é destaque apenas de sua escola. Ela é mais do que isso, porque simboliza o carnaval e em sentido mais largo o próprio espírito do povo carioca. Com a sua alegria vestida de rendas, com a sua pele feita de noite, a famosa passista não precisa vencer para ser ela própria, uma vitória do morro humilde que fabrica o samba, e um momento de glória para a sua raça. (...)”.
          Esta característica de representatividade de todo um povo, que estava aglutinada ao passo das cabrochas, em algum momento, perdeu parte do seu encanto e verdade. Como já dito, os passistas ainda resistem, só que agora sambando mais escondidos e apressados, um pouco sem fôlego ante a grandiosidade e o alçar de vôos mil que a dita “modernidade” trouxe para o espetáculo. Até mesmo ele, o pandeiro, companheiro indispensável por quilômetros de carnavais, parece artigo em vias de extinção.
          Mas como o "Brasil, brasileiro” orgulhoso ao falar de si mesmo como a “terra do samba e pandeiro" permite que lhe tomem esta face de seu "chão" folião, o simbolismo cultural, moleque e espontâneo daqueles que carregam no pé o pilar de sustentação da maior das festas? Inovação e destruição são expressões incongruentes. Jamais se inova destruindo, sobretudo os aspectos mais importantes de uma manifestação popular.
          E neste sentido, o olhar sobre a aquisição de novos valores e elementos por parte da folia carioca tem de ser criterioso. Não pretendo aqui levantar qualquer bandeira em prol do conservadorismo, como se os desfiles fossem conchas fechadas e apartadas do restante do mundo. Muito pelo contrário. Elas, as escolas de samba, são como espelhos das rotações e translações da vida, embebedando-se na fonte de renovação que é o universo ao redor.
          Entretanto, em épocas de rebaixamento de Plutão à mera condição de corpo celeste puro e simples, da ansiosa espera pelo desfile de cerca de 300 ritmistas em cima de um carro alegórico, e de outras peripécias na ordem mundial, canja de galinha continua a não fazer mal a ninguém. Portanto, deixe-me cá com os pezinhos bem fincados no meu compromisso com o(s) “chão(s)” de tantos carnavais. Compromisso este que assumi lá atrás, na televisão da velha infância...

Fábio Fabato

 

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