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Não sei como eram os carnavais de antigamente. Assumo que tenham sido ótimos, sem exceção, e que tenham ocupado, cada um a seu tempo, todo o intervalo decorrido entre o carnaval inaugural e o meu primeiro carnaval perceptível, onde quer que tenham se dado todos eles. Mais do que isso: assumo, ainda, que os carnavais contemporâneos a mim, mas desconhecidos por mim (e somem aí os vindouros) mantenham aquele nível de excelência que dei por garantido para todo o passado. E acrescentem, a estes, os que me ultrapassarem e os quais, portanto, não poderei ver. Pois muito bem. Passou disso, é comigo. Fica por minha conta. Pelo amor de Deus, estou pedindo pouco e oferecendo demais. Dei-lhes o passado quase todo, o futuro inteiro e a maior fatia do presente. O que tiver sobrado, quero tudo. Vou dar ao material aquele tratamento especial que vocês conhecem. Vai ser fino. Vejamos.
Se eu gosto do carnaval? Bom, gosto de não trabalhar quatro dias e meio. Gostava, quando moleque, de não estudar quatro dias e meio. Por isso, não aboliria o carnaval jamais. Apenas, caso os motivos da parada fossem outros, bom, confesso que caguei. Pastosamente e em abundância. Quilos e quilos. Pelo menos, durante boa meia-hora. Pelo mais, sem hora pra acabar. Com gosto. Concentrado, caprichando mesmo. Acompanhado de boa ou má leitura, não importa. O que importa é que terei feito o serviço completo.
E por quê? Ora, André Falavigna, quer dizer então que você despreza essa tão clássica manifestação da cultura popular, da mais pura brasilidade, essa coisa, como direi, de raiz e que nos remete ao coração da nação mulata, altiva e sapeca? Para falar a verdade, não. Gosto da idéia. Tenho em alta conta muitas letras de samba e diversos sambas-enredo. Dou-me, até, a luxos contraditórios típicos de entendidos entre os quais, diga-se de passagem, não possuo os méritos para me fazer incluir: gosto de Noel Rosa e de Wilson Batista. Paulo Vanzolini é grande sujeito. Penso que é mais ou menos bocó tentar contar ou compreender a história do Rio e até (isso, até) de São Paulo desconsiderando-se o papel, relativamente recente, na formação de qualquer coisa parecida com certa identidade e que foi exercido por essas instituições que chamamos de Escolas de Samba. Tenho simpatia pela Portela, sobretudo por conta daquele samba-enredo (1), dos mais famosos, que é uma estupenda coleção de blasfêmias sem deixar de ser exemplo de uma religiosidade bastante conservadora, sob muitos aspectos, e cuja qualidade poética, rítmica, é inegável . E sim, acima de tudo acho aquelas mulatas todas o que há e não, elas não são pretas, ao menos tanto quanto não são brancas também. E daí? Não é esse o meu problema. O meu problema é outro. E é para falar essas coisas que me cederam este espaço, aqui no Literário. Ninguém quer saber minha opinião sobre isto ou aquilo. O pessoal quer é desopilar. Desopilemos, rapaziada, desopilemos. Ao que me incomoda.
Não sei se neste ano já aconteceu, mas se ainda não foi, preparem-se: vai acontecer. Um sambista desconhecido ou esquecido do grande público baterá as botas às vésperas do desfile. A comunidade (favor pronunciar a coisa no melhor carioquês possível, mesmo que estiver em São Paulo), abalada, comunicará ao mundo, via Rede Globo de Televisão, que pretende honrar o defunto “na Avenida”, “no pé” e com “o coração”. Quase sempre, é essa a escola que cai. Podem reparar. Outra coisa: não ouço apuração que não for narrada por Carlos Imperial. Era escroto, todavia vinha ao caso. E tem mais: alguém precisa, e rápido, tomar o lugar de Dona Zica na hora de desmaiar. Faz falta. Em São Paulo, urge não pararem de dar a impressão de que é tudo comprado, arranjado, armado, como queiram. Trata-se de tradição e eu, como todos bem sabem, sou tradicionalista até os mais recônditos pentelhos. Lecy Brandão. Essa é caso sério. Vozeirão, incorporou-se ao nosso patrimônio histórico-cultural-carnavalesco. Comenta o desfile das escolas do grupo especial de São Paulo. Passa a maior parte do tempo enumerando e saudando as tiazinhas com as quais travou conhecimento ao longo do ano.
Desfila a Camisa? Beijos fortes à Dona Carmenzinha, à Dona Ivonezinha e à Dona Olgazinha, que costuraram dezenove quilômetros de fantasias desenhadas vanguardisticamente pelo Jorginho do Espelhozinho Salpicadinho de Farinha de Primeirinha.
Desfila a Mocidade? Beijos e abraços para a Dona Terezinha, para a Dona Luzinha e para a Dona Chiquinha (são sempre três e sempre inhas), que colaram, cheias de paciência, doze toneladas de garrafas de Tampico Frutas Vermelhas, ajudando a compor esse desfile assinado por Miguelzinho Septozinho Imprevisível que nos conclama a reciclar o plástico e a dar a bunda.
Com franqueza: não me identifico muito com a coisa. Essa gente trabalha duro e é séria, eu sei, mas há quem as avalie, remunere, reconheça e incentive. Não precisam de mim para mais nada, né não? Graças ao bom Deus.
Também me recuso a ir à praia. Lotada. Música ruim e alta, cerveja quente, água escassa e micoses sobrantes. Você fica tentado a pedir uma caipirinha de Vodol. Estradas repletas de bêbados desqualificados. Fezes boiantes. Calçadas recendendo a urina. Areias, idem. Sol escaldante. Bebês que a gente não conhece chorando sem parar, na nossa orelha. Gente que dá cerveja a tais bebês, na chupeta, para os “acalmar”, e gente que acha isso engraçadinho. Gente que faz chupeta em troca de cerveja quente e, depois, urina na calçada e na areia, além de por as fezes pra boiar e a música ruim no último volume. Isso é bom? Não, não é. Há quem goste? Sem dúvida. Uma coisa fica boa só porque há quem goste dela? Há quem acredite nisso. Seria o caso de se reconhecer as possibilidades qualitativas de se contrair herpes, por exemplo. Não tenho saco para esse tipo de condescendência. A praia, no carnaval, não precisa de mim para nada que não possa fazer acompanhada de milhões de marmitas para pernilongos.
O mesmo vale para os bailes de carnaval. Compreendo a necessidade de alguns, já passei por isso. Trata-se de criar oportunidades reais de cópula, sem muito trabalho e sem perspectiva de complicação posterior. O pessoal se sente na obrigação de fornicar só porque é carnaval e isso facilita a vida de quem precisa fornicar aqui e agora. OK, mas não é mais meu caso. Quaisquer outras finalidades que se aleguem em favor desses eventos desacreditam as pessoas que as argúem. Não, ninguém vai pela música, nem pelo agito (que catzo, afinal, é isso?), nem pela gente bonita. O pessoal vai é beber e ver se descola sexo com desconhecidos bêbados. De preferência, bonitos. O barulho ajuda. Não existe a mais mínima necessidade de se tentar nos enrolar estando-se munido de motivos tão bons: o pessoal quer trepar bêbado, caramba! De meu lado, resolvo isso de outro modo. A Jovem Esposa está na fase do saquê, agora. O troço é cíclico e a fase do saquê é sempre muito boa.
Ao menos, haverá futebol. São Paulo estará menos abarrotada, e o Cambuci continuará enterrado no esquecimento. Haverá a feira, o meu maior lazer. A Juriti permanecerá onde sempre esteve. A Império do Cambuci deverá fazer algum barulho, o Bloco da Ressaca, também. Nada que incomode. Alguém vai estuprar alguém em algum lugar, e, pelo que entendi da propaganda oficial, é importante nenhuma das partes esquecer a camisinha. Afinal, o importante é a camisinha e pronto: todos os outros assuntos relacionados a sexo são pinto, quando se está a falar da camisinha. Registrar-se-ão furtos e roubos, e pessoas serão passadas na faca. Duas ou três chacinas acompanharão, da periferia, as baterias cada dia mais sincopadas que troam madrugada adentro, no centro expandido. Depois, tudo voltará ao normal, e só o que terá restado como lembrança serão sobras de penicilina, qualquer cicatriz venérea e muita vantagem pra contar. E cinzas. É justo. Muito desse negócio surge do pó; é inevitável que termine nele.
Vocês hão de convir comigo: não é nada tão empolgante assim, que valha mais do que a folga de quatro dias e meio. Se fosse só pelo carnaval, bem... Se fosse só pelo carnaval, eu pulava.
[1] Refiro-me ao samba “Portela na Avenida”, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, de 1982. |